MARIA DUSÁ

Maria Dusá

(GARIMPEIROS)

Romance de costumes sertanejos e chapadistas

Índice

I

Abria-se para o nascente o velho casarão da Lagoa Seca Lagoa Seca: localizado no município de Iraquara, na Chapada Diamantina, na Bahia, o povoado de Lagoa Seca pode ter servido de inspiração para alguns dos cenários de Lindolfo Rocha. Embora o autor não mencione diretamente esse local em suas obras, é possível que ele tenha conhecido a região durante suas andanças pela Chapada Diamantina, incorporando-a, de forma indireta, em seus enredos.
.

As dimensões da morada, e, mais que isso, o amplo avarandado de peitoril Avarandado de Peitoril: varanda de casa que apresenta estruturas horizontais, geralmente em janelas ou paredes, onde é possível se debruçar ou apoiar objetos. Na região Chapada Diamantina – BA, é comum encontrar peitoris na arquitetura das casas antigas, marcando a estética e a funcionalidade das construções da região.
Hotel Alpina na cidade de Mucugê – BA.
, guarnecido por centenas de tabiques Tabiques: divisórias de pequena espessura, geralmente de madeira.
, graciosamente recortados, vistos de longe, sugeriam a presunção de ser ali o pouso da abastança e do conforto.

No entanto, ao aproximar-se um pouco, o viajante arguto, lido ou corrido, mal continha uma interjetiva de desilusão, porque, em realidade, os listrões vermelhos de goteiras que lavaram o caiamento Caiamento: aplicação de cal, geralmente cal hidratada ou cal virgem, em paredes ou em outras superfícies. Esse processo é de baixo custo e serve para proteger as construções do tempo e aumentar a sua durabilidade, além de melhorar a aparência.
, corroendo o adobe de argila Adobe de argila: é um tipo de tijolo feito a partir da mistura de argila, areia e água, moldado em blocos e seco ao sol. Era utilizado principalmente na construção de paredes em áreas rurais, por ser econômico, possuir boa isolação térmica e acústica, e ser ideal para climas quentes e secos.
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ferruginosa, as paredes rachadas, desaprumadas e carcomidas, na altura dos alicerces, indicavam uma casa abandonada. Acrescente-se a vista de estacas isoladas, moirões de porteiras inclinados e apodrecidos, e ter-se-á a classificação de tapera que os sertanejos dão a moradas que foram de gente opulenta Gente opulenta : no contexto apresentado, refere-se a pessoas que, no passado, possuíam riquezas, bens ou uma posição de destaque na sociedade, mas que, com o tempo, perderam sua fortuna, prestígio ou influência.
. De fato, os raros vizinhos de légua e mais, denominavam essa antiga fazenda Tapera da Lagoa, ou simplesmente: — Tapera. Mas assim o faziam somente em ausência dos donos que ainda a habitavam, posto que em estado de extrema pobreza e miséria orgânica.

Ao encontrar-se com o velho Raymundo Alves, ou com a quinquagenária Maria Rosa, sua mulher, os vizinhos, conhecidos velhos, talvez por um impulso de compaixão para com os herdeiros de uma das melhores fortunas do sertão em princípios do século passado, tratavam-no por senhor Raimundo e cortejavam-na com o tratamento de dona. Era isso também uma espécie de caridade que eles agradeciam com um sorriso desconsolado, sem, contudo, esquecerem jamais os modos altivos e os tiques de ricaços de outros tempos.

Teve esse casal quatro filhas e dois filhos. Como os pais, viviam quatro restantes, em ociosidade, cobertos de andrajos, morrendo à fome. A seca de 59 Seca de 59: foi um evento climático ocorrido em 1859, que afetou principalmente o sertão baiano, com escassez prolongada de chuvas. Isso resultou em falta de água, alimentos, morte de gado e um grande aumento dos preços dos produtos, tornando ainda mais difícil a vida da população local. (https://ppgh.ufba. br/sites/ppgh.ufba.br/files/2 _as_secas_na_bahia_do_seculo_xix. sociedade_e_politica.pdf.)
, foi-lhes ainda um bom pretexto para a incurável preguiça, porque ninguém realmente podia cuidar de roças.

Apenas duas moças faziam rendas Rendas: trabalhos manuais feitos com fios finos, usando agulhas ou bilros, para criar tecidos e ornamentos delicados. Essa tradição artesanal, antiga e valorizada no Brasil rural, é também fonte de renda complementar para muitas famílias. Na Chapada Diamantina, esse artesanato ainda é praticado e preservado em algumas comunidades.
Diponível em crab.sebrae.com.brestado_postsrenda-de-bilros.
, cujo produto insignificante supria-lhes algumas precisões, de longe em longe.

Uma tarde, a velha assistia, no peitoril, ao trabalho de rendas das duas filhas, enquanto o filho João e a outra moça arrancavam, na catinga, raízes de umbu, para o bró Bró: comida simples e de baixo valor nutritivo, geralmente preparada com tubérculos do umbuzeiro, do coqueiro ou de outros vegetais.
indigerível da ceia, quando soaram ao longe os cincerros e guizas Cincerros e guizas: são instrumentos em forma de chocalho ou sino, usados para ajudar a guiar e reunir a tropa durante o deslocamento. O cincerro é geralmente pendurado no pescoço de animais maiores, como bois e vacas, e produz um som forte e grave. Já as guizas são menores e costumam ser usadas como enfeites nos arreios de cavalos, produzindo um som mais leve e agudo.
de uma cabeçada Cabeçada: correia ou alça que envolve a cabeça e o focinho do animal e sustenta os freios da cavalgadura; cabresto.
. [1] Neste início de romance já nos é possível observar o uso frequente que o narrador faz dos chamados termos regionais. São palavras que nos remetem a uma região determinada, onde seu uso é comum. Juntamente com essa referência à região, temos geralmente indicações de um modo de vida, de comportamentos e atividades características dessa região, em um período de tempo determinado. (N. E.). (Série Bom Livro, 1978, p.11).
A seca tinha tornado raras as tropas naquela estrada. Ouvidos habituados à solidão receberam esses sons como se escutassem o bimbalhar dos sinos duma igreja em festa. Houve alvoroço. O sangue subiu às faces das moças, que apanharam, às pressas, almofadas e pelegos velhos, em que se sentavam, e correram para o interior da habitação, embaraçando os bilros, cujos fios, encardidos de pó vermelho, saltavam dos pés de mandacaru, servindo de alfinetes. A velha correu ao quarto açodada:

— Seu Raymundo, boas-novas! Aí vem uma tropa!

— Levanta, homem! Cria coragem!

Estremunhado, assim, do sono doentio de faminto, o velho abriu os olhos vagarosamente. A mulher insistia baixando a voz, porque soava já no terreiro a estropiada do primeiro lote Lote: o termo se refere a cada grupo de animais que, juntamente a um condutor, transportam cargas.
, de mistura com os sons da cabeçada:

— Levanta, homem!

— Ó de casa! – Brada no peitoril uma voz forte, de homem, enquanto retiniam chinelas sobre os tijolos estragados.

O velho fez um esforço, sentou-se no catre Catre: tipo de cama rústica e simples, geralmente feita de madeira ou metal, comum em séculos passados, especialmente em áreas rurais ou acomodações modestas.
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e respondeu:

— Ó de fora!

O arrieiro estava impaciente, porque mal ouviu a resposta perguntou:

— Pode-se arranchar aqui? tem cômodo pra os animais?

Não suportando mais a moleza do marido, a velha saiu e, depois de dar e receber as boas tardes, respondeu:

— Arranchar, pode; cômodo, campo fora Campo fora: espaço ao ar livre, em meio ao campo.
.

O arrieiro, um rapagão moreno, de uns vinte e cinco anos, fez um – Assim! – gemido e acompanhado de um gesto de contrariedade, e, voltando-se para os camaradas, gritou em voz de comando, enquanto desatava as esporas:

— Derruba!

E, obedecendo ao seu próprio mando, saltou do peitoril, já sem chinelas, levantando burros deitados, desarrochando-os rapidamente e atirando os couros Couro: Ao longo da narrativa, o termo “couro” é frequentemente utilizado. Em algumas passagens, ele se refere a peças de couro usadas para confeccionar arreios, cangalhas e outros equipamentos utilizados no manejo de animais. Em outras situações, o termo se refere ao “couro cru”, ou seja, à pele de animal ainda não tratada, que é geralmente mais difícil de manusear e transportar devido à sua consistência e peso.
no terreiro sujo de estravo.

Chegaram os dois lotes restantes.

Era a hora do trabalho árduo do tropeiro, principalmente quando a tropa está puxada ou batida, isto é, magra, fatigada de longas jornadas. Hora de aperto em que o tropeiro, prático no ofício, não distrai a atenção para coisa alguma, porque, à tarde, o animal, carregado, pode caminhar mais uma hora; porém, parando no pouso, suporta, de pé, um minuto.

Assim, toda a demora é nociva, não só porque o burro de tropa facilmente adquire a manha de deitar-se, (e, nesse caso, é preciso levantá-lo, pois se lhe tirarem uma vez a carga, deitado, apanha também esse sestro), como porque, no levantar-se, pode sonsar ou espaduar-se Sonsar ou espaduar-se: no contexto apresentado, os termos pertencem à linguagem regional e popular, referindo-se ao comportamento do animal após se deitar. “Sonsar” indica o ato de fingir fraqueza ou cansaço, simulando dificuldade para se levantar. Já “espaduar-se” descreve o risco de o animal tombar de forma brusca ao tentar se erguer, podendo deslocar o ombro ou a região escapular.
e o prejuízo é ainda maior.

Por isso, conhecedor e prático da vida de tropeiro, o velho Raymundo, parando no peitoril, assistia, impassível, ao serviço bem feito, e esperava, com paciência, que o terminassem, para saudar e receber as saudações do costume, entre sertanejos, enquanto, pelas frestas das portas e das janelas, olhares tristes e cobiçosos miravam os surrões Surrões: sacos de couro usados pelos tropeiros para guardar e transportar comidas e objetos.
Disponível em: psassunapontadalingua.blogspot.com201512museu-do-sertao-mossoro.html.
de sal e bruacas lustrosas de unto Bruacas lustrosas de unto: bruacas são malas de couro cru, utilizadas sobre as selas dos animais de carga, especialmente para o transporte de mantimentos como o toucinho de porco. Por serem usadas para carregar esse tipo de alimento gorduroso, ficavam brilhantes pela gordura acumulada.
Disponível em: sertaodesencantado.blogspot.com201409significados-de-bruaca.html.
. E não só o olhar, mas especialmente o olfato se deliciava com cheiro característico de uma carregação Carregação: ato de carregar grande quantidade de mercadoria; carga.
de carne ou toucinho. Como toda a sua gente, o velho deglutia em seco.

Amainada a lufa-lufa Amainada a lufa-lufa: a expressão combina o verbo “amainar”, que significa acalmar ou reduzir a intensidade, com o termo “lufa-lufa”, usado para descrever agitação, correria ou movimento incessante. Assim, ao dizer “amainada a lufa-lufa”, o narrador indica que a correria cessou e a agitação deu lugar à calmaria.
, com a arrumação Arrumação: no contexto rural e regional, esse termo pode ter dois sentidos. Pode se referir ao ato de organizar objetos ou espaços, mas também é usado para indicar os preparativos para uma viagem ou um acampamento temporário, especialmente durante atividades de tropeiros.
das cargas, em fileiras para cada lote, aproximou-se do peitoril o que figurava de capataz ou arrieiro, e, após a saudação, reinquiriu:

— Se não havia alguma roça a alugar, para que a tropa não ficasse campo fora. [2]Observe que apesar do uso de dois pontos, parágrafo e travessão, sequência de elementos da escrita indicadora de um discurso direto, a forma que se segue é do tipo indireto, isto é, pertence à fala do narrador. Essa transgressão de norma da escrita, sem consequências significativas, vai ser repetida durante todo o romance. (N. E.) (Série Bom Livro, 1978, p.13).

O velho retribuiu a saudação e respondeu desculpando-se com a sua extrema pobreza e a seca, pior que a de 19 Seca de 19: no trecho apresentado, a seca de 1819 se refere a um período de estiagem que atingiu o Nordeste brasileiro, incluindo a Bahia. Embora tenha causado sofrimento e prejuízos à população, seus impactos e duração foram menores em comparação com a Grande Seca de 1877-1879, considerada a mais devastadora da história nordestina.
. E por esse tom prolongou-se a conversação, no correr da qual o capataz declarou-se mineiro, de nome Ricardo Valeriano Brandão, e dono da tropa, inteirando-se ao mesmo tempo de quem foi e a que estado se reduzira o velho Raimundo Alves, o herdeiro esbanjador de bonita fortuna, e que nem sabia ao justo quantos filhos naturais tinha em vários lugares.

Quanto aos camaradas, continuavam na faina Faina: termo relacionado ao trabalho árduo e demorado, realizado pelos tropeiros durante suas jornadas.
de tirar cangalhas Cangalha: armação de madeira, normalmente acolchoada, que se coloca no lombo dos animais para pendurar e transportar carga de ambos os lados.
Disponível em: www.du-ze.compeca.aspID=8043704.
e raspar, enquanto o cuca desempenhava suas funções culinárias, tendo começado por encher e pendurar a borracha Borracha: recipiente feito de couro rústico, com bocal estreito, usado por tropeiros e garimpeiros para conservar e transportar líquidos, como água ou cachaça.
.

Ao lusco-fusco, depois de beber a água minguada e lutulenta Lutulenta: que tem lodo; lamacenta.
da próxima lagoa, seguiu para a arrumação a tropa, guiada pelo andrajoso filho do Raimundo, o qual, por esse serviço, fazia jus aos rojões do cuca Rojões do cuca: torresmo do cozinheiro. (Série Bom Livro, 1978, p.13).
.

O mineiro tinha armado a rede no peitoril, recusando a sala ou a varanda, por causa do calor.

Foi uma noite de fartura e de folgança para a ditosa família Alves. Além de partilharem todos da gorda ceia de arroz com carne (o antigo locro, que os almocreves Almocreves: pessoas que conduziam animais de carga e/ou mercadorias de um lugar para outro.
espanhóis e portugueses aprenderam dos árabes), e mais do legítimo café mineiro, ouviram, até alta noite, um dos mais famosos improvisadores de trovas, desses tempos, a que chamavam Manuel Pingo d’Água: tropeiro de ofício, valente por índole, e tocador de viola por arte.


II

Sol alto, a tropa milhada Milhada: termo regional da linguagem tropeira que designa a tropa organizada em fila, com os animais dispostos em suas posições habituais, pronta para partir.
e engangalhada Engangalhada: termo popular do sertão baiano. Diz-se da tropa já carregada, com cangalhas e bruacas presas aos animais de carga.
, esperava a hora de arribar Arribar: significa partir, seguir viagem ou levantar acampamento. É uma expressão regional usada em áreas rurais do Nordeste brasileiro e do sertão baiano, com presença marcante na Chapada Diamantina e em outras regiões por onde circulavam tropeiros e viajantes.
. Os camaradas almoçavam. Enquanto arreavam o ruão Ruão: cavalo que possui uma pelagem composta por pelos brancos e levemente acastanhados ou pelos brancos com manchas escuras e arredondadas.
, o mineiro, reatando a conversa interrompida com o Raymundo, afirmava:

— É como digo: por menos de cinco mala-reis Mala-reis: forma popular e regional de dizer mil-réis, antiga unidade monetária usada no Brasil até o ano de 1942. Um “mala-reis” correspondia a mil réis (1$000). Expressões como “por menos de cinco mala-reis” eram usadas para indicar quantias muito pequenas, quase simbólicas, consideradas de pouco valor à época.
não vai um celamim Celamim: antiga medida de capacidade para secos e equivalente à 16.ª parte da unidade de medida agrária (alqueire), ou 2,27 litros.
para ninguém. O sal da terra pode-se achar mais em conta; o sal de Baixo, não. A tropa está morta. Não está vendo? Não há tropa que suba, nem desça. A estrada está que nem um fiapo de capim manso Fiapo de capim manso: no contexto apresentado, a expressão é usada para descrever uma estrada estreita, quase imperceptível. A comparação com um fiapo sugere algo fino e difícil de enxergar. Já o termo “capim manso” refere-se a um tipo de capim geralmente rasteiro, delicado, fácil de manejar e que pode servir de alimento para o gado.
. Onde tem, nalgum ponto, é amargoso, capim brabo e fraco Amargoso, capim brabo e fraco: expressões que indicam vegetação de baixa qualidade para o pasto. Referem-se a plantas daninhas, capins que nascem espontaneamente, de difícil manejo e com baixo valor nutritivo, sendo insuficientes para a pastagem.
. Desde que saí da Serra Nova, quase não descansei. Cheguei em S. Félix, achei logo frete inteirado para Maracá Maracá: na região da Chapada Diamantina, na Bahia, existe o município de Maracás, que integrava as antigas rotas de tropeiros e garimpeiros durante o ciclo do ouro e dos diamantes.
. Aí tampei Tampei: no contexto sertanejo e dos tropeiros, tampei é o verbo tampar no pretérito, que significa fechar, cobrir, proteger ou guardar algo, especialmente relacionado à carga transportada, como no caso da tropa de sal.
a tropa de sal, e ia para casa. Mas no Gavião soube que na Lavra do Mucugê, sal e toucinho estão bons. Então troquei um bocado de sal por toucinho e aqui vou eu…

— Ah! seu Ricardo, interrompeu o velho, nós estamos perguntando por perguntar. Como já disse, tivemos criação e dinheiro, mas hoje não temos nada. Se sua mercê der um celamim por meio cobre Meio cobre: expressão popular utilizada para se referir a uma quantia extremamente pequena de dinheiro. A palavra “cobre” refere-se às antigas moedas de cobre, metal associado às moedas de menor valor, especialmente nos séculos passados.
, pois nem assim podemos comprar. Faz dois meses que não sabemos o que é uma pedra de sal na boca. Vivemos de raiz do mato, fruta brava e palmito cozido sem sal!

— Na verdade! comentou o mineiro, sorvendo após uma fumaça do pito de Baependi Pito de Baependi: refere-se a cigarro artesanal, geralmente feitos com fumo de rolo ou tabaco natural, associado à cidade de Baependi, em Minas Gerais.
; para quem já teve, dói muito!

— E todo o mundo destas beiradas! Acrescentou o velho, pondo a prumo a cabeça, que se assemelhava à de um esqueleto.

— E por que não vão para as Lavras? Inquiriu o mineiro; lá está tudo caro, mas ainda não se come raiz de pau.

— Que é da força pra caminhar, meu senhor?! Atalhou a velha; e ainda para sustentar uma porção de gente que só tem pele e osso?! Sua mercê quer ver?

E a mulher, com cara de fúria, gritou em voz esganiçada:

— Ó João, chama tuas irmãs!

Apareceu um rapazinho de uns 14 anos, coberto de trapos que foram camisa e calções, muito sujos, predominando a cor vermelha da terra que habitava.

— Chama tuas irmãs! repetiu a mulher que armava assim uma cena de efeito para obter alguma esmola.

Em alguns momentos surdiu à porta da varanda um grupo de três moças, parecendo ter 15 anos a mais nova.

E essa mãe, a quem a fome tirara certamente todo o amor maternal e todo o pudor feminil, se é que em tempo algum o teve realmente, levantava, sacrilegamente, os trapos que cobriam os ombros e seios e essas pobres criaturas, para que o mineiro, certificando-se de sua miséria, pela magreza extrema de suas filhas, se compadecesse ao mesmo tempo. Ao aproximar-se, porém, da mais velha, que poderia contar 18 anos, esta recuou um passo. Apesar da fome, corava e reagia.

Ó xente, Maria!! que é que tem o homem ver tua magreza?!

Duas lágrimas brotaram dos olhos da moça que sentou-se no pavimento, apoiando a cabeça sobre os joelhos.

— Menina tola! Quem tem vergonha morre de fome!

No terreiro, ao longe, Pingo d’Água começou a cantar em dueto com um companheiro, enquanto descansavam o almoço.

— Deixe a moça, Dona, disse o mineiro penalizado.

— Levanta a cabeça, Maria! Insistia a velha, com o olhar chispando de ódio e, fingindo um sorriso, acrescentou, como gracejando: — Ele quer te levar; tu queres ir?

E, ao mesmo tempo, fingindo uma ameaça que, entretanto, exprimia sua verdadeira intenção, afirmou:

— Se ele desse um celamim de sal, bem que eu te dava para cozinhar na casa dele.

— É que nem isso ela vale, obtemperou o velho, interrompendo um cochilo.

O mineiro, de cabeça baixa, pitava, em silêncio, meditando sem dúvida nas aberrações possíveis da natureza humana, e no que, a esse respeito, tinha visto, desde criança, em suas viagens.

Ao levantar a cabeça, deu com o olhar na moça. Notou, então, que, apesar da magreza, Maria conservava uns tons de beleza, apenas esmaecidos pela fome. Os olhos negros e grandes pareciam, nesse momento, refletir um braseiro; o rosto moreno, emoldurando-se pelos cabelos lisos e corredios que se desgrenhavam nos ombros, patenteava longo martírio. Não inspirava sensualidade, porém amor e compaixão.

— Pronto, patrão! Disse um dos camaradas.

— Carrega! Ordenou Ricardo, em voz pausada, voltando-se para o camarada.

— E sua mercê tinha coragem de dar um celamim de sal pela Maria? interrogou o velho Raymundo, em tom de desenxabida chocarreirice Desenxabida chocarreirice: expressão utilizada para descrever um tom de fala irônico ou zombeteiro, porém sem graça. No contexto apresentado, o velho Raymundo adota esse tom ao se referir à própria filha, Maria, revelando uma atitude machista, desrespeitosa e carregada de desprezo, com a clara intenção de diminui-la e desvalorizá-la.
.

— Até mais, se não fosse pecado e crime comprar gente forra, respondeu o mineiro, supondo que o velho gracejava:

— Estou falando sério, asseverou o velho; sua mercê não sabe o que é comer palmito sem sal, por necessidade.

— Compro, disse o mineiro, tornando-se vermelho.

— Está dito, bradou a velha, apanhando num torno da varanda uma cuia Cuia: também chamada de cabaça ou coité, é o fruto da árvore conhecida como cabaceira ou cuieira, cujo nome científico é Crescentia cujete. Seu fruto possui uma casca dura e arredondada, ideal para ser esvaziado, seco e utilizado como recipiente. No nordeste brasileiro, a “cuia” é comumente utilizada como medida caseira em contextos rurais.
grande, em que devia receber o preço de sua filha mais velha; aqui está esta cuia que é um celamim certinho.

O mineiro gritou ao cuca e mandou trazer um celamim de sal, um lanho Lanho: corte ou talho profundo. No contexto regional, refere-se a tiras compridas e finas de carne, especialmente toucinho.
de toucinho e um pedaço de carne.

Marido e mulher não sabiam de que modo exprimiriam seu contentamento e gratidão. O mineiro é que não contava com semelhante gratidão. Num açodamento Açodamento: pressa com que se faz alguma coisa, geralmente em excesso e sem reflexão. (Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, https://dicionario.priberam.org/a%C3 %A7odamento).
indescritível, a velha foi suspender ao fumeiro o saquinho de sal, a carne e o toucinho, cujo cheiro só, lhe causava um prazer infantil.

Arrochando os últimos animais do seu lote dianteiro, Pingo d’Água cantava propositadamente:

Nesse mundão tenho visto!

Mas aqui já é sofrê! Aqui é que filho chora,

Filho chora e mãe não vê!

Ao atar à corda do fumeiro, a velha resmungava, respondendo ao trovista, como se pudesse ser ouvida:

— Vê, sim; mais O termo faz referência à conjunção adversativa “mas”, que indica oposição; no entanto, foi grafado como “mais”, advérbio que indica adição, para representar a marca de oralidade do personagem.
a fome é que tem cara de herege!

No peitoril, o Raymundo, numa espécie de delírio, esfregava as mãos de contente, e de olhos fechados, prelibava o gozo Prelibava o gozo: forma verbal composta que une o verbo prelibar (provar antes, experimentar previamente) ao substantivo gozo (prazer intenso, satisfação, alegria). No contexto apresentado, Raymundo saboreava mentalmente, antecipadamente, o prazer que sentiria ao comer um pedaço de carne gorda.
de um pedaço de carne gorda, que, havia meses, nem ao menos lhe fora dado cheirar.

As duas irmãs de Maria tinham-se retirado, chorando.

Então, dirigindo-se à vendida, que soluçava convulsivamente, o mineiro falou:

— Não chore, não, moça; seus pais venderam a filha, mas a filha não foi comprada: fica aí, com eles; somente lembre-se que o mineiro se chama Ricardo Brandão. Aqui está mais uma lembrança, que eu destinava a uma irmã.

E assim dizendo, tirou da escarcela uma pequena medalha de prata e a entregou com mão trêmula. A moça recebeu a lembrança e disse por entre soluços:

— Deus ajude a vosmecê, e lhe dê feliz viagem!

Partia o lote dianteiro. Depois de rasgada cortesia com o chapéu de couro, e um até outra vista Até outra vista: expressão utilizada como forma de despedida, para indicar que espera ver ou encontrar a pessoa novamente. É semelhante a dizer “até logo” ou “até a próxima”.
, a quem estava no peitoril, Pingo d’Água soltou dois gritos guturais para ativar o lote, e seguiu cantando:

Guardo o mimo que me deste

Na hora da retirada:

Quem paga amor com firmeza

Não fica devendo nada!

O velho Raymundo mal voltara a si da surpresa. Nos seus tempos de miséria, não tinha visto generosidade igual. Disse, por fim, desenvolvendo a elevada estatura e acenando com os compridos braços esqueléticos:

— Pois, senhor Ricardo Brandão, aqui fica este velho, que, se não morrer, ainda pode servir pra botar seu animal no pasto, quando sua mercê passar por aqui outra vez.

Depois de uma pequena pausa, murmurou:

— É verdade! bem se diz que o mineiro tem o coração nas mãos!

Ricardo mordia a ponta do cigarro, olhando para os dois lotes que partiam.

Restava o da cozinha, sempre mais retardatário.

O velho abanava a cabeça. Ao ver assomar à porta sua mulher, disse:

— Sinhá Maria Rosa, pois o mineiro é bom mesmo.

— Pois não deixou ficar a Maria?

— Ué!… pois não leva, não? Interrogou a velha sem ocultar seu desapontamento.

— Não, sinhá Maria!

— Deus é que o há de ajudar! Deus é que o há de ajudar! repetia a velha com esforço, porque sua intenção era desobrigar-se de sustentar a filha.

Partia o lote do coice Lote do coice: emprega-se para designar a retaguarda do rancho, o último grupo do comboio. (N. E.) (Série Bom Livro, 1978, p.16).
. Ricardo correu a vista no rancho, apertou no mento a correia do chapéu de coiro Coiro: termo utilizado como sinônimo de couro, refere-se à pele grossa e resistente de certos animais. Para a confecção de vestimentas e acessórios, utiliza-se o couro curtido, isto é, a pele de animais que passou por um processo químico ou físico-químico denominado curtimento, que visa tornar o material mais durável e resistente.
curtido, amarrou as esporas, despediu-se de todos, trocando com Maria um aperto de mão, e saltou no seligote Seligote: variação regional de serigote, designa um tipo de sela rústica, firmada sobre o lombo do animal, utilizada para montaria. É um termo comum em regiões sertanejas do Brasil, especialmente no contexto da vida rural e da cultura vaqueira.
Disponível em: www.oswaldt.com.br/serigote-boiadeiro.
, esporeando o ruão energicamente.

Adiante, voltou-se; Maria enxugava os olhos, debruçada no peitoril. O mineiro parecia fascinado. Mais longe ouviu Pingo d’Água cantando:

Meu beija-flor da campina.

Que tiveste o teu condão:

Leva no bico a saudade

Ao bem do meu coração.

O sol, a essa hora, calcinava a estrada poeirenta da catinga. Os animais turravam e gemiam por desafogo.


III

Poucos, da atual geração de baianos, desconhecem, pelo menos de tradição, o que foi, para o povo sertanejo, o ano de 1860. De quantas secas periódicas têm devastado os sertões brasileiros, raras legaram tão horrível memória, como a geralmente conhecida por seca de 60, aliás 59, de que resultou a crise alimentícia denominada fome de 60.

Na crença dos adoradores de um Deus que pune e premeia, nunca se revelou mais evidente e punitivo o seu braço irado e inexorável.

Nesse ano de tristíssimas recordações a zona ubertosa Zona ubertosa: expressão usada para indicar uma região de terra fértil e produtiva, com grande capacidade para a agricultura e o cultivo de plantas.
do interior da província da Bahia transformou-se em terra sáfara Terra sáfara: expressão que se refere a uma terra infértil, geralmente pedregosa, seca e deserta, com pouca ou nenhuma capacidade para o cultivo.
, imprestável; de nutriz fecunda e dadivosa, que era, mudou-se em madrasta irritadiça e ilacrimável; de liberal e opulenta, em mendicante e miseranda.

Em grandes extensões de terreno não se vislumbrava sinal de clorofila senão no Icó, a planta que resiste a todas as secas, e nas diversas espécies de cactos, entre as quais sobressaíam o mandacaru, a palmatória e o xique-xique Neste trecho, a narrativa apresenta espécies de plantas típicas do semiárido nordestino, adaptadas para armazenar água e resistir a longos períodos de estiagem. Essas espécies integram o bioma caatinga e desempenham um papel essencial na sobrevivência de pessoas e animais durante as secas prolongadas, como as que marcaram a Bahia e o sertão nordestino ao longo do século XIX.
Disponível em: www.naturezabela.com.br.
formando este sempre e em grande cópia os grandes e bizarros candelabros de Humboldt Candelabros de Humboldt : também conhecido como Candelabro de Paracas, recebe esse nome em homenagem ao naturalista e geógrafo Alexander von Humboldt. Trata-se de um geoglifo (desenho de grandes proporções feito no solo), com formato semelhante a um candelabro, localizado na Península de Paracas, próxima às Ilhas Ballestas, no litoral do Peru.
. [3] No trecho apresentado, observa-se um certo distanciamento do narrador em relação à região retratada, evidenciado pela mistura entre elementos típicos da caatinga com os Candelabros de Humboldt, um símbolo estranho à cultura nordestina. Essa combinação sugere um olhar externo ou uma visão exotizante, que transforma o sertão baiano em um cenário curioso e fantasioso, distante da realidade local.

A catinga (mato esbranquiçado) justificava de modo perfeito a denominação tupi, dada a essa vegetação enfezada.

Para cúmulo da penúria vegetal e animal, os incêndios multiplicavam-se nos campos e carrascos. Propósito ou descuido de caminhante ou caçador, o fogo fortalecia a ação destruidora do sol.

No céu, nenhum sinal promissor de chuva, e já ia em meio o ano.

Como sucede nos anos secos, nuvens tênues e esgarçadas passavam alto, muito alto, em diversas direções, como se evitassem baixar sobre a terra maldita.

Já não tinha encantos o alvorecer nas terras sertanejas. Um silêncio pesado substituíra a ruidosa alegria do passaredo farto, a saltitar em meio da verdura primaveril doutros tempos.

Os arrebóis vespertinos aparentavam apenas a beleza trágica de quotidianos incêndios em vastas e longínquas regiões do ocidente.

De resto, o céu em fogo dizia bem com o alvejar das ossadas dispersas pelos campos desolados.

As fazendas mais abastadas estavam quase desertas. Dificilmente se ouvia um mugido, mesmo tristonho e cavernoso. Mais de um fazendeiro rico batera Batera: pretérito mais-que-perfeito do verbo “bater”. A expressão “bater as porteiras”, especialmente no contexto sertanejo ou rural, é empregada no sentido de fechar as porteiras, encerrar as atividades, abandonar o curral ou desistir da criação.
já as porteiras dos currais mal situados.

Pequenos lavradores e criadores, transformados em jornaleiros de pataca e de doze vinténs Jornaleiros de pataca e de doze vinténs: expressão que, no texto, se refere a trabalhadores assalariados mal remunerados.
, emigravam sem destino, isto é, caminhavam à toa, por falta de trabalho e de alimento.

Nas estradas, de espaço a espaço, encontravam-se quadros vivos da mais completa consternação. Aqui, um velho, cercado de filhos e netos famintos, num cirro interminável de durar dias e dias; ali, um desventurado pedindo pelo amor de Deus um punhado de farinha para que o filho pudesse morrer; adiante a figura esquelética doutra mater dolosa Mater dolorosa: expressão latina que significa “mãe dolorosa”. Refere-se à Virgem Maria em sua representação de sofrimento, especialmente durante a Paixão de Cristo, simbolizando a dor de uma mãe ao ver seu filho sofrer.
, na última agonia, deixando que o filhinho lhe sugasse a derradeira gota de leite sanguinoso; além, orlando a estrada, arranchamentos provisórios, retirantes Retirantes: pessoas que abandonam a sua terra fugindo da seca e da miséria em busca de uma região que lhe dê melhores condições de vida e trabalho.
famintos, movendo-se lentamente, em busca d’água ou de raízes, extremamente magros, cheios de escaras, de doenças, de achaques, ou aniquilados de anemia profunda, e dentre os quais partiam gritos que aterravam, gemidos que cortavam o coração, e, de envolta com esses, imprecações dos desesperados, pragas dos cínicos, gargalhadas dos desalmados, choro de
crianças, tudo isso lembrando alguma coisa daquele choro e ranger de dentes do Juízo Final.

Viajando no coice da tropa Coice da tropa: expressão regional de sentido figurado que indica a ação de seguir atrás da tropa de animais, especialmente bois ou cavalos.
, no seu ruão, passo a passo, Ricardo assistia, cada vez mais desanimado, a essa espécie de lúgubre procissão da fome, a desfilar- se vagarosa pela estrada afora.

Tendo arribado do pouso do Raymundo Alves, o mineiro mandou derrubar no rodeador Rodeador: regionalismo nordestino que se refere a um espaço aberto nos campos, usado pelos vaqueiros para reunir, organizar ou inspecionar o gado, especialmente durante o manejo ou a contagem dos animais.
, distante três léguas, e onde ainda existia um olho-d’água Olho d’água: termo usado para designar uma nascente, lugar onde a água brota naturalmente do solo. Isso acontece quando o lençol freático (camada subterrânea de água) chega próximo à superfície e a água aparece, formando uma nascente.
, que nunca secou, porque nunca lhe fora destruída a vegetação protetora.

Junto à casa de um velho africano, derrubaram-se as cargas.

Feito o rancho, isto é, arrumadas em dupla fileira as bruacas e surrões de sal, sobrepostas as cangalhas, — peitoral para a frente, a fim de se não atrasar a viagem, — aceso o fogo e armada a trempe de três agulhas de arrocho Trempe de três de agulhas de arrocho: tripé rústico feito com três ferros finos (as “agulhas”), amarrados ou presos no topo, formando uma estrutura em forma de pirâmide. Esse tripé é usado para sustentar uma panela sobre o fogo, permitindo o preparo de alimentos. É um utensílio típico, comumente utilizados por sertanejos e tropeiros em acampamentos.
, enfeixadas na parte superior, — os camaradas, menos o cuca, perguntaram ao patrão onde deviam arrumar.

O sol estava a cravar-se.

Ricardo Brandão dirigiu-se ao velho africano, que tecia esteiras de pindoba Pindoba: tipo de palmeira, em especial do gênero Attalea, muito comum no nordeste do Brasil, de onde se retiram folhas para cobrir casas, fazer esteiras ou artesanato.
Disponível em: commons.wikimedia.org.
, sentado à porta, e depois de saudá-lo, indagou:

— Se não havia pasto, perto ou longe.

Passo qui é, sinhô?! Exclamou o preto admirado. Passo é esse qui sinhô tá veno: foia seca só. Agora, si sinhô qué qui burro come de nôte manda gente derrubá mandacaru. Munto bom; boi gosta munto.

O mineiro riu da estultícia do conselho, e insistiu:

— Mesmo longe não haveria alguma roça velha, encapoeirada?

— A roça qui é, ioiô? Perguntou o africano, com cara de riso. Pai Tomé veio moleque pra terra de branco, e nunca viu coisa assim. Ah! ioiô! Deus brigou com nós tudo! A roça aqui, nem longe nem perto; nem véia, nem nova. Ué!

E continuou a trabalhar.

O mineiro decidiu-se a mandar arrumar num eixo de serra, que se via a certa distância, e para abreviar foi ajudando a tanger Tanger: no contexto rural, significa conduzir, guiar ou afastar um animal, geralmente com gestos, sons ou instrumentos.
os animais. A uns duzentos passos estava um homem cavando a terra.

Parou. Com a curiosidade de saber para que fim, aproximou-se, e depois das boas tardes, perguntou:

— Você procura água nesse duro, amigo? O sertanejo levantou a cabeça:

— Não, patrão; estou fazendo uma cova para meu filho que morreu.

Olhe ali. Era um menino que fazia gosto ver! Vivo como ele só!

O mineiro olhou e viu uma mulher sentada junto a um murundu, tendo no regaço o cadáver dum menino.

Depois de um longo suspiro, o sertanejo acrescentou em voz queixosa:

— A fome, patrão! A fome é que faz tudo isso!

— E o menino morreu de fome? Inquiriu o mineiro.

— Morreu, sim senhor! Disse o sertanejo, e acrescentou: — como muita gente tem morrido por este sertão de meu Deus! Até pai já tem matado filho pra comer! Perto daqui mesmo, dizem, eu mesmo não sei, dizem que um velho Raymundo (pode ser que sua mercê tenha dormido na casa dele), que esse velho Raimundo já matou dois.

O mineiro sentiu apertar-se-lhe o coração. Ligeiro calafrio cortou-lhe a espinha dorsal.

— Que é que está dizendo: homem?! Exclamou, sem dominar-se.

— Não sei, patrão; o povo é que diz. E parece que é assim mesmo porque ninguém sabe rumo dum que ele disse que se perdeu no mato, há uns dias.

Rápida associação de ideias fez esfriarem as mãos do mineiro. Somente agora lhe causava estranheza que o velho Raymundo tanto insistisse para trocar uma filha por um celamim de sal, em vez de o fazer por um pedaço de carne, quando por não tê-la se queixava.

Pensou em Maria, e o coração doeu-lhe deveras.

Não quis, em todo o caso, revelar o negócio do sal.

Não se confessaria ingênuo ou cúmplice involuntário de uma tal monstruosidade.

— Vender filho, continuou o sertanejo, isso é coisa que se vê todos os dias.

— Na verdade! Comentou o mineiro, baixando a cabeça, pensativo.

— Ah! Patrão de minh’alma! Exclamou o sertanejo, parando a escavação, têm se visto coisas com esta fome! Saí da terra dos meus, cidade de Caetité, e lá, e nos caminhos tenho visto! Patrão! — Bradou o retirante com amargura, — o Deus que nos protegia morreu ou mudou-se!

A enxada caiu de novo, cavando fundo, enquanto pela face do sertanejo duas lágrimas desciam vagarosamente.

Houve pequena pausa, durante a qual só se ouvia o tum, tum, abafado, da enxada na cova.

— Nós, João, não devemos agravar a Deus; antes sofrer com paciência! Disse, sufocando os soluços, a mulher, cujo rosto, oculto pelo xale, não pôde o mineiro observar.

O sertanejo não respondeu. Enterrando mais o chapéu de couro na cabeça, e cerrando os malares Malares: termo que se refere aos ossos das maçãs do rosto, também chamados de ossos zigomáticos. No contexto apresentado, a expressão “cerrar os malares” indica um gesto em que a pessoa fecha o semblante e contrai os músculos do rosto, geralmente como forma de conter uma emoção intensa, como raiva, revolta ou indignação.
, como para estrangular qualquer imprecação Imprecação: maldição, praga, xingamento.
inconveniente, continuou a trabalhar.

Ricardo interrompeu o doloroso silêncio.

— E daqui para onde você vai, sôr João?

— Eu mesmo nem sei, patrão. Daqui, talvez pra beira-mar. Tenho vontade de tentar a sorte na Chapada Nova Chapada Nova: região da Chapada Diamantina que, assim como a Chapada Velha, foi marcada pela exploração de diamantes. A Chapada Nova corresponde às áreas de garimpo e povoamento mais recentes, em contraste com as ocupações mais antigas da Chapada Velha.
; mais a mulher está repunando Repunando: do verbo repunar, a expressão popular e regional significa mostrar resistência, repulsa ou aversão a algo.
.

— Pois é bom ir. Eu pra lá vou vender um salzinho. Se for bom deveras, fico.

— Daí, pode ser que eu vá, obtemperou o João. Só tenho medo de ser um lugar, onde ainda se mata gente por vadiação.

— Não é mais assim, não. Isso foi no princípio, quando um sujeito, pra comprar uma lazarina Lazarina: espingarda de pequeno calibre, de um só cano, que no passado era muito utilizada pelos sertanejos, especialmente na caça de aves.
Disponível em: www.antiguidadesdomestre.com.br.
, alvejava nalgum pobre que passava.

Em todo o caso, não há como a gente andar prevenido.

Houve novo silêncio.

Caía a noite. O sertanejo tomou o cadáver do filho, envolto em trapos, e o depositou na cova com o mesmo cuidado como se o fizesse numa cama. Em obediência à superstição, Ricardo lançou na cova um pugilo Pugilo: pequena porção de algo que cabe entre os dedos, como um punhado ou uma pitada.
de terra, e com um até outra hora, retirou-se depressa para que a inditosa mãe pudesse chorar e lastimar- se à vontade.

Dirigindo-se para o rancho, o mineiro pensava em Maria. Se tinha razão o povo, e dizia coisa certa, o pai desnaturado seria capaz de matá-la também.

Não era, entretanto, só o sentimento de compaixão que agora oprimia a alma generosa do mineiro. No seu entender, parecia estar estonteado por uma coisa feita Coisa feita: feitiço, maldição lançada por alguém.
. O lindo semblante da sertaneja e o seu olhar de uma doçura infinita exaltavam a imaginação do serrano com tal intensidade que o obrigavam a evocar a lembrança do olhar da Nossa Senhora do Patrocínio da Serra Nova Nossa Senhora do Patrocínio da Serra Nova: Nossa Senhora do Patrocínio é um título da Virgem Maria, muito venerada pelos católicos em Minas Gerais. Há diversas localidades que homenageiam esse nome, inclusive uma comunidade real chamada Serra Nova, situada no município de Rio Pardo de Minas. No romance, o personagem Ricardo Brandão é natural de uma “Serra Nova”, possivelmente uma referência a esse local real.
.

Se visse de novo a sertaneja, pensava ele, perderia de todo a cabeça e casar-se-ia com ela. Como devia ser amorosa e boa! No mais, a miséria é que não a deixava parecer mais bonita.

Quando assim meditava o serrano, ouviu um dos seus camaradas, que voltava da arrumação, cantar de voz solta, na toada dolente que os sertanejos conhecem:

Lá vai a garça voando

Lá pra a banda do sertão,

Leva Teresa no bico,

Maria no coração…

Ricardo reconheceu a voz de Pingo d’Água. Este continuou:

Cravo roxo, cravo rosa,

Cravo de toda nação!

Meu benzinho de tão longe…

Ai, meu Deus, não posso, não!

E estribilhava com mais tristeza:

Ai, meu Deus, não posso, não!

O mineiro sentiu que se lhe marejavam os olhos, após ligeiro arrepio dos cabelos, e gritou de longe:

— Cala essa boca, demônio!

Pingo d’Água compreendeu que tinha ferido o patrão e retrucou, incontinente, com vivacidade:

O tronco nasce da terra,

Do tronco rebenta a rama,

Meu patrão não se incomode,

De longe também se ama!

Chegado ao rancho, Ricardo não pôde cear. Tomou apenas um cuitezinho Cuitezinho: expressão utilizada em regiões do interior do Brasil para se referir ao ato de tomar um pequeno café, geralmente servido em uma cuia ou recipiente semelhante, chamado de cuité. A expressão carrega um tom afetivo e costuma acompanhar momentos de conversa e hospitalidade.
de café, acendeu um cigarro, e estendeu-se na rede. Apesar de toda a energia empregada para calcular os negócios, e pensar nas riquezas da Chapada Chapada: o autor faz referência à Chapada Diamantina, uma região constituída de montanhas, chapadas e planaltos da Serra do Espinhaço, localizada na região central do estado da Bahia.
Imagem retirada do site Pixabay.
, só uma ideia sobrenadava, a obsediar-lhe a mente. Maria surgia-lhe do fundo da memória, cada vez mais formosa.

Pingo d’Água, sentado num couro, à beira do fogo, ralhava na viola.

Ao longe ouviam-se rezas de velório em um rancho de retirantes.

Somente pela madrugada o mineiro adormeceu.


IV

Ao alvorecer, Ricardo estava de pé. Em tempo de verão, é a hora mais aprazível do dia, na região das catingas. O ar fresco e puro, o aroma silvestre e indefinível, que se respira, restituem ao organismo combalido as energias precisas para a labutação quotidiana.

Ao levantar-se o patrão, o cuca trouxe-lhe água para o rosto, e, após, o cuitezinho de café, que ele, como mineiro de gema, sorveu vagarosamente, aos goles poupados, como pratica o experimentador de vinhos. Após o último gole, levantou-se da rede, deixou o cuité Cuité: pequeno recipiente, geralmente feito da casca seca do fruto da árvore cuitezeiro. É culturalmente usado para servir café, água ou outras bebidas em regiões do interior do Brasil, especialmente no sertão.
sobre uma bruaca, puxou da bainha Bainha: capa ou estojo de couro ou material resistente onde a faca ou outro tipo de lâmina é guardada e geralmente presa à cintura.
Imagem retirada do site Pixabay.
a Parnaíba Parnaíba: tipo de faca longa, com lâmina fina e ponta aguda, bastante utilizada por vaqueiros, tropeiros e sertanejos, tanto no manejo de animais quanto em tarefas cotidianas, como picar fumo.
Disponível em www.tuneldotempoleiloes.com.br.
, picou fumo, que esfarinhou entre as palmas, prendendo a faca, de ponta para cima, entre o polegar e o indicador; depois do que, apertando o fumo picado na mão esquerda, cortou uma palha de milho e pôs-se a alisá-la, demoradamente, como que absorvido num pensamento profundo.

Dominava o silêncio do ermo. Os camaradas tinham partido a campear, desde as primeiras barras do dia.

Para Ricardo e o cozinheiro, esse silêncio era apenas interrompido pela fervura do caldeirão da feijoada com toucinho e pernil. O mineiro continuava a meditar. Depois de sorver algumas fumaças do cigarro, sentiu certa lassidão Lassidão: cansaço, fadiga, falta de força ou estímulo para agir.
, que o obrigou a sentar-se.

Quando os primeiros raios do sol iluminavam as cristas das serras do poente, ouviu-se o som de um cincerro e as conhecidas vibrações do solo, indicando um tropear ao longe. Em poucos momentos ouviram-se assobios e gritos guturais dos camaradas, tangendo a tropa. Ao chegar esta ao rancho, Ricardo notou de um lance d’olhos que faltavam animais.

De fato, os camaradas queixavam-se de que, por não haver pasto, a tropa esparramara na catinga.

— Faltavam Boneca, Rompante, Bem-feito e outros; porém que deviam estar aí mesmo, nalgum encosto da serra.

— Que haviam de aparecer; até a sede ajudava a botá-los pra fora. E depois de tais afirmativas, os tropeiros foram ao café.

Estava em expectativa o que constitui o terror dos viajantes: uma falha forçada Falha forçada: situação causada por uma circunstância adversa ou por um erro grave, que resulta em uma parada ou pouso inesperado, sem alternativas de solução imediata.
num pouso sem recurso.

Ricardo, entretanto, não se mostrava contrariado com essa expectativa; parecia até satisfeito. Dir-se-ia que o acaso vinha favorecer a uma tendência nova de seu espírito, subjugado pela paixão nascente. Segundo afirmou, tempos adiante, nesses momentos tinha ímpetos de voltar, tomar na garupa do Ruão a sua cativa, e associá-la de qualquer modo ao seu destino. Mas esses pensamentos foram passageiros. Aprendera de sua velhinha mãe a respeitar uma donzela, qualquer que fosse o seu estado e condição. Além disso, era sinceramente católico e nos princípios rudimentares de sua religião encontrava sempre uma antemural Antemural : construção que serve de defesa, colocada diante de uma muralha principal. No sentido figurado, como apresentado no romance, representa qualquer forma de proteção ou barreira contra algo considerado perigoso ou indesejado.
contra a tentação da carne voluptuosa, e contra os maus pensamentos. Afora esses princípios ou por excesso deles, era supersticioso. Sabia orações prodigiosas contra todos os males que o pudessem afligir. O mineiro fez-se forte e rezou contritamente. O efeito da autossugestão foi miraculoso. Ricardo viu tudo com mais clareza.

Gostava de Maria, porém não podia se casar com ela, e muito menos tê-la por amante. Tinha praticado uma boa ação e não havia de destruir essa lembrança com uma doidice. Ali, era seguir d’olhos fechados o plano velho. Chegar a Chapada Nova, vender o carregamento Carregamento: mercadorias ou produtos transportados de um lugar para outro, geralmente em tropas de animais ou veículos. Nas atividades de comércio antigo da Chapada Diamantina, o carregamento era fundamental para o sustento das comunidades e para a economia da região.
e a tropa, reservando apenas alguns animais para a viagem de retorno, e tentar a sorte nalgum garimpo rico. Se em princípio lhe desandasse a sorte, antes de entrar no cobre da tropa, seguiria para o Serro Serro: município brasileiro localizado no estado de Minas Gerais, pertencente à região geográfica imediata de Diamantina. Está localizado em uma área de relevo montanhoso, com serras, vales e rios que compõem um cenário típico da região do Espinhaço.
, a fim de comprar novos animais e recomeçar a vida. Se fosse feliz, voltaria mais tarde à Serra Nova, compraria uma fazenda de criação, que isso de andar em coice de tropa era cousa que nem ia nem vinha.

O sol alteava-se. Ao voltarem os camaradas com a tropa, que tinham levado a beber, Ricardo tornara-se resoluto; dava ordens mais terminantes. Ajudava, com presteza, a milhar os animais, que avançavam famintos, insistentes, com o beiço superior estendido e trêmulo, ora gaguejando uma espécie de rugido gutural, surdo; ora escoiceando-se e mordendo-se uns aos outros, murchando as orelhas, aos pinchos e aos guinchos, que os distribuidores de embornais aquietavam, distribuindo, também, murros a torto e a direito.

É esse constante lidar com animais em viagem o que faz do almocreve ou tropeiro uma entidade particular, um especialista de classe, que se não confunde
com o recoveiro ocasional Recoveiro ocasional: pessoa que transporta cargas ou mercadorias em lombo de animais. Desempenha uma função semelhante à dos almocreves ou tropeiros, mas de forma esporádica, em trajetos menores e sem exercer essa atividade como profissão principal.
.

O tropeiro tem uma idiossincrasia, uma gíria, um modo, um jeito todo seu, seja para se corresponder com os companheiros, seja para atalhar Atalhar: no contexto rural e sertanejo, a expressão, no trecho apresentado, significa ajustar, preparar ou arrumar algo rapidamente, especialmente equipamentos usados no trabalho diário, como as cangalhas dos animais.
uma cangalha, seja para alcear Alcear: levantar ou posicionar uma carga sobre o animal ou estrutura.
uma carga, ou arrochar um lote inteiro, dando a mesma inclinação a todas as agulhas Agulhas: no Nordeste, especialmente entre vaqueiros e tropeiros, pode significar haste de madeira ou estrutura que ajuda a travar ou estabilizar a carga sobre a cangalha — um suporte colocado no lombo de animais de carga. Essas agulhas são fundamentais para garantir que a carga fique firme durante os longos deslocamentos realizados pelo sertão.
. Para todo o ofício mais vale, de ordinário, a longa prática; mas o verdadeiro almocreve tem um instinto que causa pasmo aos ignorantes do ofício, como tem uma idiossincrasia que, observada, faz meditar um médico.

Assim, até para milhar Milhar: expressão utilizada no contexto rural para se referir ao ato de jogar ou distribuir milho, ou tipo de grão, como alimento para os animais.
animais reunidos, só um prático pode fazê-lo sem apanhar um couce, nem deixar se entornar o milho Entornar o milhar: expressão utilizada para indicar o ato de derramar o milho, por inexperiência ou desatenção, especialmente ao alimentar animais.
.

Distribuída a ração, o camarada de nome Felippe consultou:

— Hein, Pingo d’Água, você não acha que Boneca e Rompante tomaram por aqueloutro boqueirão que está mais acima?

— Acho. Aquela mula é mocambeira Mocambeira: adjetivo atribuído a animal que se esconde no mato.
que é uma desgraça!…

— Deixem de consultas, interveio o patrão; Benedito e Joaquim ficam pastorando; vocês dous sigam logo, que os animais estão aí mesmo e ainda hoje se pode fazer marcha Marcha: expressão usada por tropeiros e vaqueiros para se referir a uma viagem ou deslocamento, geralmente feito a pé ou com animais de carga ou montaria. Indica o ato de seguir caminho, percorrendo uma determinada distância, seja ela curta ou longa.
pequena para o Angico Angico: parada ou local de descanso na antiga rota dos viajantes e tropeiros pela Chapada Diamantina.
.

Os camaradas obedeceram e seguiram. Um pouco adiante, Felippe disse ao companheiro:

— Hein, Manuel? Você viu cumo o patrão tem estado zambuado Zambuado: expressão regional do Nordeste, de uso popular, que se refere a alguém que está triste, calado, emburrado ou de mau humor.
estes dias?

Mais hoje está com a vista mais alegre.

— Eu sei, moço! respondeu Pingo d’Água, e começou a cantar baixo, obrigando Felippe à segunda Segunda: no contexto apresentado, refere-se a fazer a segunda voz em uma canção, ou seja, cantar uma harmonia complementar à melodia principal.
, sem interromper o andar ligeiro:

O cravo pediu à rosa,

Que lhe desse o seu condão:

A rosa lhe deu espinho,

Mas o cravo não quis, não!

………………………………………….

A viola chora a prima,

A prima chora o bordão…

— O cravo pediu à rosa

Que lhe desse o seu condão!

&nbsp &nbsp &nbsp Eh! seu condão!…

O eco respondia ao longe nas quebradas da serra, porque, insensivelmente, tinham alteado a voz.

Dentro em pouco os campeadores desapareceram na catinga. Cada um tomou seu rumo.

No rancho, os animais que acabavam de comer milho, e dos quais eram tirados os embornais Embornais: sacolas feitas de tecido grosso, couro ou lona, usadas no pescoço ou nos arreios dos animais para guardar e servir alimentos, como milho ou farelo. São comuns em ambientes rurais, especialmente durante viagens ou paradas em ranchos.
, ficavam por ali, a turrar Turrar: ação dos animais de empurrar, cutucar ou remexer objetos com o focinho, testa ou chifres. Em alguns contextos, também pode significar resmungar, mugir baixinho ou emitir sons abafados, como fazem bois ou vacas quando estão impacientes ou incomodados.
, a babujar Babujar: molhar algo com saliva ou babar sobre ele, como fazem alguns animais ao mastigar sem engolir de imediato, deixando folhas ou objetos úmidos.
folha seca do chão ou a roer casca de pau.

Já se fazia sentir o tédio de uma folha Folha: o termo que aparece duas vezes neste parágrafo para indicar a parada forçada do rancho devido ao extravio de animais, parece ser devido a algum engano, uma vez que nas demais passagens em que se alude a esse fato diz-se falha (Cf. p. 21), ou, em dialeto popular, faia (acima). (N. E.) (Série Bom Livro, 1978, p.23).
, em que o dia parece mais longo; o sol mais quente, ou mais fria a chuva; as moscas mais importunas; o silêncio mais desanimador; e em que, tudo que não seja o burro aparecido Burro aparecido: expressão regional que pode ser usada para descrever algo ou alguém que aparece de forma inoportuna ou inesperada, trazendo desconforto ou irritação. No contexto do trecho, pode ser uma metáfora para algo que interrompe a tranquilidade, causando aborrecimento.
, ou o doente são, que não seja, enfim, a cessação da folha, traz aborrecimento.

Passou a hora do almoço manso. O sol despejava uma torrente de fogo. Em longas extensões o calor irradiava-se, como se a terra fosse a abóbada de um imenso forno quente.

Passou a turma de retirantes, que pediam esmolas por todos os santos. Sem molestá-los, Ricardo convenceu-os de que não podia dar o que não era seu.

Passou uma procissão de penitência, em preces (ad petendam pluviam) Ad pretendam pluviam: locução latina que significa “para pedir chuva”. (Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, https://dicionario.priberam.org/ ad%20petendam%20pluviam).
conduzindo uma imagem de Nossa Senhora do Alívio. Mudava-se, para uma casa distante, a residência da imagem, para que ela fizesse chover imediatamente.

Pela estrada afora o mulherio, aterrorizado com a seca e a fome, carregava pedras, gritando esganiçadamente Esganiçadamente: expressão que descreve um grito estridente, agudo e penoso, muitas vezes associado a uma sensação de desespero ou sofrimento.
como carpideiras egípcias Carpideiras egípcias: mulheres contratadas na antiga civilização egípcia para lamentar e chorar durante os rituais funerários. Elas expressavam a dor da perda de maneira dramática e intensa, contribuindo para o luto e a honra ao falecido.
em funerais de grande pompa.

O mineiro e os camaradas levantaram-se e descobriram-se à passagem da Santa.

A procissão desapareceu ao longe.

Passava a hora do almoço bravo Almoço bravo: expressão popular e regional que se refere a um almoço feito fora do horário usual, geralmente mais tarde do que o horário esperado ou desejado.
, e não vinham os animais! Uma dúvida surgiu no espírito do mineiro:

— Teriam furtado os animais?

Quis ir até ao rancho do africano, para indagar se havia ali tal costume; porém nesse momento aproximava-se o João, o sertanejo com o qual Ricardo travara conhecimento no dia anterior, e que, depois de saudar, falou:

Hein, meu patrão, com que está sua mercê de faia Faia: termo de uso coloquial e regional em algumas áreas do Nordeste, utilizado para se referir a “falha”. No contexto apresentado, “faia” é empregada para indicar um problema, especificamente a falta ou ausência de animais.
!

— Era verdade. O peior Peior: do latim (peior), quer dizer pior.
era que podiam estar furtados uns animais desaparecidos, respondeu Ricardo.

— Não tivesse susto, atalhou o sertanejo. Apesar da fome, o povo dali não furtava. Estava de pouco tempo, mas podia afirmar. Os animais apareceriam.

— Os anjos dissessem amém, respondeu Ricardo, coçando a cabeça, de impaciente.

Não esperou muito. Soou ao longe o prolongado grito do tropeiro, quando encontra o último animal sumido.

— Os anjos tinham dito amém, observou João.

Contente por isso, o mineiro abriu a bruaca da cozinha, cortou bom pedaço de carne, e deu-o ao sertanejo.

— Farinha é que não havia, acrescentou.

O sertanejo expandiu-se em agradecimentos:

— Pudesse contar com ele onde estivesse. Nunca se esqueceria daquela esmola de bom coração. Ia sempre para a Chapada, e lá estaria ao serviço do patrão.

E despediu-se. Decorrido algum tempo, chegaram os animais.

O mineiro desapontou. Estavam finos e varados de sede.

Ordenou que Felippe fosse dar-lhes de beber, enquanto o Manuel atalhava algumas cangalhas de seu lote, que estavam lambendo em vésperas de pisar Lambendo em vésperas de pisar: metáfora ou expressão regional que sugere uma situação em que algo ou alguém está quase prestes a agir ou a se mover, mas ainda está em um momento de preparação ou expectativa.
.

Determina a superstição dos tropeiros que se não descubram os lotes do rancho sem que estejam vistos todos os animais da tropa, porque o proceder contrário dificulta o aparecimento dos que estejam transviados, obrigando a falhar.

Assim, foi Pingo D’Água o primeiro a tirar de seu lote os couros que estavam tinindo com o calor. Desarrumou as cangalhas, lembrando que o próprio Diabo não quis ser tropeiro para não lidar com couro cru em tempo de sol quente, e, enquanto trabalhava, distraía-se:

Quem parte, parte chorando;

Quem fica vida não tem;

Não tem sono nem sossego,

Quem chegou a querer bem.

O canto era intermeado de socos para acamar ou espalhar a paina do talabardão Talabardão: cobertura de couro cru na armação ou madeira, que facilita a acomodação da carga nas cangalhas. (Dicionário Online de Português, https://www.dicio.com.br/ talabardao/).
Disponível em: www.modacountrysertaneja.com.br.
, nos pontos a atalhar.

Quem tiver cuidados, tenha

Mas nunca procure amar,

Que é pena que puxa pena

Sem nunca mais acabar.

Quem saiu de sua terra,

Se disponha a padecer;

Que a tristeza nunca solta

Quem tem alma pra sofrer.

Concertava com a voz do camarada o ruído causado pelo corrute Corrute: expressão regional, provavelmente relacionado ao som característico produzido por animais ao se moverem ou se alimentarem.
dos animais vindos, triturando o milho.

Chegou a hora de suspender cargas. — O sol declinava; mas ainda havia tempo de alcançar pouso de melhor arrumação, daí a légua e meia.

Os camaradas almoçaram. Ricardo almoçou pouco. Apesar de seu trabalho pensava, de quando em quando, em Maria, sem, contudo, se perturbar, como a princípio.

O primeiro lote partiu. A cabeçada agitava-se, vibrando com o desânimo peculiar às tropas batidas Tropas Batidas: no contexto apresentado, a expressão é usada para descrever um grupo de animais de carga que já preparados ou arrumados para a jornada se mostram exauridos e fatigados de longas viagens.
. Seguiram-se o segundo e o terceiro lotes. Arrochou-se a última carga do traseiro. Ricardo, ao calçar as esporas, relanceava o olhar pelo rancho para verificar se acaso ficara alguma coisa.

Por pior que seja um rancho em que o viajante passou algumas horas, causa- lhe sempre alguma saudade o deixá-lo, porque, ao menos, acode-lhe ao pensamento a dúvida ou possibilidade de o tornar a ver algum dia.

Nessa tarde a tropa derrubou Derrubou: no contexto de tropeiros e vaqueiros, significa que a tropa (grupo de animais de carga) chegou e se acomodou ou parou em um local para descansar ou pernoitar.
no Angico.


V

Do pouso do Angico, Ricardo continuou a viagem sem tropeços. Em poucos dias atravessou o gerais Gerais: campos extensos, desabitados e com vegetação escassa.
do Tanquinho Tanquinho: na região da Chapada Diamantina, no estado da Bahia, existe um distrito chamado Tanquinho. Ele faz parte do município de Lençóis e está localizado a aproximadamente 126 quilômetros da cidade de Mucugê, outra importante localidade da Chapada em que o romance é ambientado.
; passou pelo Comércio de Fora Comércio de Fora: antigo ponto de passagem e localidade próxima a Mucugê, que servia como parada comercial e de apoio para viajantes e garimpeiros.
, e entrou em Mucugê Mucugê: cidade histórica da Chapada Diamantina, localizada a cerca de 448 km de Salvador, a capital do estado da Bahia. No século XIX, destacou-se como um dos primeiros locais da região onde se encontraram diamantes, atraindo garimpeiros e comerciantes e marcando a história do ciclo do garimpo de diamantes na Bahia.
, aliás vila de Santa Isabel, desde 1847, porém somente conhecida então por aquele nome.

Em consequência da viagem, estava quase apagada no espírito do mineiro a lembrança da sertaneja. A sua chegada ao Mucugê obliterou ainda mais essa lembrança.

Não obstante ser filho da província de Minas e, além disso, bastante corrido, habituado, portanto, a lidar em meio de grandes cidades sertanejas, em todo o caso, o burburinho febril do comércio do Mucugê, d’então, tornou-o, na gíria dos tropeiros, zaranza Zaranza: atordoado.
e apoucado Apoucado: acanhado, tímido.
.

É preciso, em verdade, petulância e presença de espírito, para um homem qualquer enfrentar, de chofre, com calma e sem desaprumar-se, o grande movimento de uma lavra, recentemente descoberta, onde se aglomere uma população de dezenas de milhares de indivíduos, gente de todos os climas, de todas as raças, de todas as condições, e costumes diversos, num vaivém contínuo, numa azáfama Azáfama: movimento intenso e contínuo.
e agitação atordoadoras, de vasto acampamento de guerra, e que acobarda os tímidos, desafiando a gana dos audazes. É aí que a luta pela existência se acentua, por vezes, de um modo acerbo e apressado, evidenciando-se o princípio egoísta, segundo o qual, sejam quais forem as condições étnicas e mesológicas, o mundo é dos que rugem e não dos que balam; é dos leões e não das ovelhas; aí, como na guerra, aqueles que esmorecem são cruamente calcados pelos próprios amigos, por todos os que se arrojam no campo da luta; nem há meio termo: aí é morrer ou vencer. Nesses lugares, e em princípio, enquanto não se uniformizam os costumes, pela força da autoridade pública ou pela preponderância dos indivíduos melhores e mais fortes, o que só acontece com o decorrer de muitos anos, a própria Caridade, entre cristãos, tem o aspecto selvagem e grosseiro, do tiro de Misericórdia das execuções militares de povos cultos.

Ricardo mandou derrubar na intendência do capitão Joaquim Manuel, o protótipo da honradez, como homem e negociante. O mineiro ouviu, durante a viagem, falar muito nesse homem como homem bom do lugar, no dizer singelo dos sertanejos, que é o mesmo das antigas ordenações do Reino, e, por precaução, estando em terra alheia, dirigiu-se ao capitão Joaquim Manuel.

Precisava de quem o protegesse desinteressadamente, em qualquer emergência, e ninguém se lhe afigurou melhor.

Esse negociante modesto (liberal e monarquista que, nessa época, nem poderia sonhar ter um dia, trinta e três anos depois, um de seus filhos, como governador de um estado republicano) [4] O Partido Liberal defendia a monarquia federativa, a abolição do poder moderador e a eleição de senadores. Em 1870, a sua ala exaltada fundou o Clube Radical, que daria origem ao Partido Republicano, contrário, evidentemente, à monarquia, e defensor dos interesses da classe média em ascensão.
; recebeu o mineiro, ao balcão mesmo, com o seu discreto e afável sorriso:

— Donde vinha? Que trazia de negócio? Inquiriu.

— Era da Serra Nova, Minas, mas vinha de baixo pelo Maracá, donde pretendeu seguir para a casa; mas voltou para a Chapada Nova, porque soube que o sal estava dando, bem como o toicinho. Por isso a tropinha estava tampada de sal e toicinho.

Respondeu-lhe também o bom negociante:

— Que aproveitasse a quadra, realmente boa. Não podia ser melhor. Ele não comprava, porque não tinha mais onde depositar; porém, comprador não faltaria.

Pedindo sua proteção, o mineiro justificou-se, declarando que não tinha conhecimento algum no comércio.

O paciente negociante deu-lhe informações de pessoas e chegou até a indicar-lhe um alugador de manga Manga: no contexto apresentado, o termo manga, usado no Nordeste e em outras regiões do Brasil, refere-se a um local cercado, destinado para o pasto do gado. É uma área de vegetação fechada ou cercada, onde os animais são reunidos temporariamente.
, de confiança, para a tropa.

Deu-lhe conselhos para não se afastar do carregamento e do rancho nem se meter em badernas, se acaso gostava disso, porque poderia se arrepender.

Ricardo asseverou sisudamente que não era de badernas, nem na sua própria terra, e, despedindo-se, voltou-se ao rancho.

Nesse mesmo dia, em poucas partidas, dinheiro à vista, vendeu o carregamento, com grande lucro.

Por segurança, logo ao anoitecer deu a guardar, contado e amarrado em bolo, todo o dinheiro ao capitão Joaquim Manuel, e, conforme o seu costume, às 8 horas estava deitado em sua rede, armada a um canto do casarão de meias paredes, denominado intendência, onde estavam hospedados outros bruaqueiros Bruaqueiros: termo utilizado na Bahia para denominar garimpeiros inexperientes; condutores de tropas de animais.
.

Não dormiu logo, porque entrou a fazer cálculos para a execução do plano traçado, isto é, vender parte da tropa e atirar-se ao garimpo.

Em tais cálculos adormeceu, imitando todos os companheiros de rancharia, no ressonar alto e compassado.

Alta noite, uma tropilha de desocupados noctívagos Noctívagos: refere-se a pessoas ou seres que têm hábitos noturnos ou que são mais ativos durante a noite.
(denominados vadios, e que constituem a escória de todas as populações) dividiu-se em grupos, e foram estes, como de costume, passear pelas intendências, acordando os bruaqueiros, arrastando couros, furtando por brincadeira, expandindo, enfim, as sensaborias do espírito baixo Sensaborias do espírito baixo: ações e ideias sem importância, maldosas ou medíocres, próprias de pessoas de espírito mesquinho e desprezível.
, acanhado e acalcanhado Acalcanhado: alguém preso a coisas insignificantes, de pensamento e comportamento desprezíveis, com atitudes de pouco valor moral ou intelectual.
.

Aproximaram-se alguns, pé ante pé, da em que estava Ricardo; porém o mineiro não se deixou surpreender. Como todos os viajantes de profissão, em geral, tinha o sono leve. Assim, quando o mais avançado quis puxar um couro do lote de sua tropa, ele disse pausadamente:

— Deixe disso, moço. O senhor não sabe com quem brinca. É melhor ir-se embora!

— Eu puxo couro de outros, quanto mais de você, respondeu o desconhecido, peguilhando Peguilhando: provocando, promovendo disputa.
, e puxando o couro, entre gargalhadas mal reprimidas dos companheiros de vadiação.

— Terra sem governo! Solta o couro, já lhe disse! Retrucou Ricardo.

Os camaradas acordaram, e procuravam se munir de agulhas de arrocho, às apalpadelas, descompondo os vadios.

O vadio, supondo que esse, como outros bruaqueiros, se limitasse a persegui-lo, atirando agulhas, cobriu a cabeça e as costas com o couro aberto, e correu, arrastando as garras do couro pelas calçadas.

— Espera, diabo, traste! Gritaram a um tempo bruaqueiros e tropeiros, atirando, no rumo, pilungas e agulhas Pilungas e agulhas: minérios satélites do diamante. (N. E.) (Série Bom Livro, 1978, p.26).
.

O sangue, em saída, refluíra ao coração do mineiro, que, como possuído de loucura instantânea, apanhou a pistola de dois canos, e correu no encalço do desconhecido, cujos companheiros corriam adiante, em fileira, fiados no anteparo do couro.

— Espera, desgraçado! Gritou Ricardo, que, não podendo alcançá-lo, fez
fogo.

Ouviu-se um grito e o baque do couro. Os outros vadios fugiram covardemente, deixando o companheiro, de borco, na calçada.

Ricardo voltou, caminhando, e, ainda descalço, sentou-se na rede, afrontado, ardendo em cólera.

Algumas portas se abriram, apareceram luzes, ao longe.

Os camaradas, penalizados, rodearam o mineiro, exclamando, comentando:

— Ora, patrão, vosmecê se botar a perder com uma coisa ruim!

Vosmecê matou o homem deveras!

Diante dessas vozes, Ricardo levantou-se sem saber que devia fazer. Voltava-lhe a reflexão. Tirou-o do estado de perplexidade o conhecido trilo de apito da polícia, e o estrépito de gente que corria dos lados da cadeia velha.

Falou-lhe então, alto, o instinto de liberdade e conservação. Agarrou o casaco de algodão, tingido de lama, enrolou-o na capanga de couro, e, empunhando punhal e pistola, correu por um beco próximo, que dava para o rio Mucugê.

Quando a patrulha chegou, já o mineiro tinha desaparecido na escuridão.

Todos se apressaram em dizer que o criminoso já não estava ali; tinha fugido,
ninguém sabia para onde.

O comandante da patrulha agastou-se com tanta inocência:

— Alguém haveria de saber, ou então prenderia todos.

Para aquietar a fúria dos soldados, um, menos discreto, dos tropeiros disse:

— Ora! fugiu por esse beco aí, e se bem andou, já atravessou o rio.

— Olha os sapatos dele ali, acrescentou outro, apontando, à luz do fogo do caldeirão da feijoada, os sapatos do mineiro debaixo da rede.

Assim orientados, os guardas (como então eram chamados) atufaram-se na escuridão do beco, em carreira até à Várzea; porém nada viram nem ouviram. Apenas ninhadas de porcos espantados corriam, soprando e roncando, pela várzea afora. A um soldado pareceu-lhe lobrigar um vulto branco, ao longe, correndo. Por desencargo de consciência, descarregou a pistola que levava em companhia da baioneta. Não se viu mais nada. Após o estampido, que ecoou de quebrada em quebrada, e os estalos do ricochete da bala nas pedras, tudo ficou em silêncio, em relação a vozes e movimentos de gente.

Somente o Mucugê escachoava ruidoso por entre os rochedos e penedias escuras de suas margens e leito.

A patrulha entrou em consultas recíprocas e resolveu-se a voltar à intendência.

Os camaradas de Ricardo não arredaram pé dos lotes.

Ao chegar à rancharia, o comandante da patrulha inquiriu se não tinha companheiros ali o criminoso:

— Que tinha camaradas, foi a resposta de Pingo d’Água, e indicou os quatro, incluindo-se.

— Pois me acompanhem, disse o furriel Furriel: era uma graduação militar que existiu no Exército, nas polícias e nos corpos de bombeiros militares no Brasil. Em alguns contextos, o termo pode ser comparado ao que hoje seria o terceiro-sargento, ou usado apenas para se referir a uma função específica, como a de organizar a folha de pagamento e as refeições dos sargentos, cabos e soldados.
da patrulha.

— Pra cadeia? Perguntaram a um tempo os camaradas.

— Sim, respondeu um guarda, enquanto o furriel coçava a cabeça, inclinando a barretina sobre os olhos.

Uai! Exclamou Benedito, como é que o patrão faz um dilito e o camarada vai preso?

— Não. Isso não está direito, não; acrescentou Joaquim.

— E que tem isso? Perguntou o comandante.

— Tem, que eu não vou por bem, nem por mal, porque não fiz dilito nenhum. E comecem com muita conversa, eu grito meu amo, senhor coronel Rocha, e está tudo acabado. O sobrado dele é ali perto, disse Pingo d’Água.

Diante desse nome e da ameaça, o furriel coçou de novo a cabeça e os guardas emudeceram.

— Mas é preciso sempre ir à casa do Sr. subdelegado.

— Está bom, isso a gente vai amanhã, retrucou Pingo d’Água; hoje já é tarde, não tem quem tome conta do rancho. E depois o vadio não teve nada. Um carocinho de chumbo na pele.

O furriel concordou e retirou-se, depois de tomar o nome do patrão e dos camaradas, em direção da casa duma velha Sinhanna, onde soube estar o ferido, um rapazola imberbe, órfão de pai e mãe.

Aí verificou o furriel que realmente não devia incomodar o subdelegado. Apenas quatro caroços Caroços: no contexto apresentado, a palavra caroços se refere a pequenas balas ou projéteis de chumbo, usados como munição em armas de fogo antigas.
de chumbo empregaram-se na omoplata direita, interessando somente o tecido celular subcutâneo. O couro de boi certamente enfraquecera a força dos projéteis.

Remédios caseiros foram aplicados e o rapazinho fumava o seu cigarro tranquilamente.

Em todo o caso, no dia seguinte foram ouvidos os camaradas e mais tropeiros, formando-se o corpo de delito. Por mais que as testemunhas do inquérito inocentassem o delinquente, este, na melhor hipótese, teria que pagar a imprudência do seu impulso, com quatro anos de prisão com trabalho, ou mais oito meses de prisão simples, porque ficou bem classificada a tentativa de homicídio.

Entretanto não houve mais novas do mineiro. Essa falta de notícias incomodava ao capitão Joaquim Manuel, por estar de posse do dinheiro de Ricardo, e exposto à probabilidade de comparecer em juízo, o que nada tinha de agradável.

Providenciou, portanto, em segredo, para que fosse encontrado o mineiro, vivo ou morto.

Quanto aos camaradas, mandou chamá-los e aconselhou-os que não abandonassem o rancho.

Somente não pôde dar um jeito em Pingo d’Água, que, à noite, andava já de viola ao peito, cantando em desafio Desafio: disputa de cantoria improvisada entre duas ou mais pessoas, em que os participantes criam versos na hora, rimando e respondendo ao adversário. Essa tradição, conhecida como repente, embolada ou moda de viola, faz parte da cultura popular brasileira e ainda acontece em várias regiões do país.
pelas tavernas, temendo somente se enfrentar com o famoso Ponta d’Água.


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