Maria Dusá
(GARIMPEIROS)
Romance de costumes sertanejos e chapadistas
II
Sol alto, a tropa
— É como digo: por menos de cinco
— Ah! seu Ricardo, interrompeu o velho, nós estamos perguntando por perguntar. Como já disse, tivemos criação e dinheiro, mas hoje não temos nada. Se sua mercê der um celamim por
— Na verdade! comentou o mineiro, sorvendo após uma fumaça do
— E todo o mundo destas beiradas! Acrescentou o velho, pondo a prumo a cabeça, que se assemelhava à de um esqueleto.
— E por que não vão para as Lavras? Inquiriu o mineiro; lá está tudo caro, mas ainda não se come raiz de pau.
— Que é da força pra caminhar, meu senhor?! Atalhou a velha; e ainda para sustentar uma porção de gente que só tem pele e osso?! Sua mercê quer ver?
E a mulher, com cara de fúria, gritou em voz esganiçada:
— Ó João, chama tuas irmãs!
Apareceu um rapazinho de uns 14 anos, coberto de trapos que foram camisa e calções, muito sujos, predominando a cor vermelha da terra que habitava.
— Chama tuas irmãs! repetiu a mulher que armava assim uma cena de efeito para obter alguma esmola.
Em alguns momentos surdiu à porta da varanda um grupo de três moças, parecendo ter 15 anos a mais nova.
E essa mãe, a quem a fome tirara certamente todo o amor maternal e todo o pudor feminil, se é que em tempo algum o teve realmente, levantava, sacrilegamente, os trapos que cobriam os ombros e seios e essas pobres criaturas, para que o mineiro, certificando-se de sua miséria, pela magreza extrema de suas filhas, se compadecesse ao mesmo tempo. Ao aproximar-se, porém, da mais velha, que poderia contar 18 anos, esta recuou um passo. Apesar da fome, corava e reagia.
— Ó xente, Maria!! que é que tem o homem ver tua magreza?!
Duas lágrimas brotaram dos olhos da moça que sentou-se no pavimento, apoiando a cabeça sobre os joelhos.
— Menina tola! Quem tem vergonha morre de fome!
No terreiro, ao longe, Pingo d’Água começou a cantar em dueto com um companheiro, enquanto descansavam o almoço.
— Deixe a moça, Dona, disse o mineiro penalizado.
— Levanta a cabeça, Maria! Insistia a velha, com o olhar chispando de ódio e, fingindo um sorriso, acrescentou, como gracejando: — Ele quer te levar; tu queres ir?
E, ao mesmo tempo, fingindo uma ameaça que, entretanto, exprimia sua verdadeira intenção, afirmou:
— Se ele desse um celamim de sal, bem que eu te dava para cozinhar na casa dele.
— É que nem isso ela vale, obtemperou o velho, interrompendo um cochilo.
O mineiro, de cabeça baixa, pitava, em silêncio, meditando sem dúvida nas aberrações possíveis da natureza humana, e no que, a esse respeito, tinha visto, desde criança, em suas viagens.
Ao levantar a cabeça, deu com o olhar na moça. Notou, então, que, apesar da magreza, Maria conservava uns tons de beleza, apenas esmaecidos pela fome. Os olhos negros e grandes pareciam, nesse momento, refletir um braseiro; o rosto moreno, emoldurando-se pelos cabelos lisos e corredios que se desgrenhavam nos ombros, patenteava longo martírio. Não inspirava sensualidade, porém amor e compaixão.
— Pronto, patrão! Disse um dos camaradas.
— Carrega! Ordenou Ricardo, em voz pausada, voltando-se para o camarada.
— E sua mercê tinha coragem de dar um celamim de sal pela Maria? interrogou o velho Raymundo, em tom de
— Até mais, se não fosse pecado e crime comprar gente forra, respondeu o mineiro, supondo que o velho gracejava:
— Estou falando sério, asseverou o velho; sua mercê não sabe o que é comer palmito sem sal, por necessidade.
— Compro, disse o mineiro, tornando-se vermelho.
— Está dito, bradou a velha, apanhando num torno da varanda uma
O mineiro gritou ao cuca e mandou trazer um celamim de sal, um
Marido e mulher não sabiam de que modo exprimiriam seu contentamento e gratidão. O mineiro é que não contava com semelhante gratidão. Num
Arrochando os últimos animais do seu lote dianteiro, Pingo d’Água cantava propositadamente:
Nesse mundão tenho visto!
Mas aqui já é sofrê! Aqui é que filho chora,
Filho chora e mãe não vê!
Ao atar à corda do fumeiro, a velha resmungava, respondendo ao trovista, como se pudesse ser ouvida:
— Vê, sim;
No peitoril, o Raymundo, numa espécie de delírio, esfregava as mãos de contente, e de olhos fechados,
As duas irmãs de Maria tinham-se retirado, chorando.
Então, dirigindo-se à vendida, que soluçava convulsivamente, o mineiro falou:
— Não chore, não, moça; seus pais venderam a filha, mas a filha não foi comprada: fica aí, com eles; somente lembre-se que o mineiro se chama Ricardo Brandão. Aqui está mais uma lembrança, que eu destinava a uma irmã.
E assim dizendo, tirou da escarcela uma pequena medalha de prata e a entregou com mão trêmula. A moça recebeu a lembrança e disse por entre soluços:
— Deus ajude a vosmecê, e lhe dê feliz viagem!
Partia o lote dianteiro. Depois de rasgada cortesia com o chapéu de couro, e um
Guardo o mimo que me deste
Na hora da retirada:
Quem paga amor com firmeza
Não fica devendo nada!
O velho Raymundo mal voltara a si da surpresa. Nos seus tempos de miséria, não tinha visto generosidade igual. Disse, por fim, desenvolvendo a elevada estatura e acenando com os compridos braços esqueléticos:
— Pois, senhor Ricardo Brandão, aqui fica este velho, que, se não morrer, ainda pode servir pra botar seu animal no pasto, quando sua mercê passar por aqui outra vez.
Depois de uma pequena pausa, murmurou:
— É verdade! bem se diz que o mineiro tem o coração nas mãos!
Ricardo mordia a ponta do cigarro, olhando para os dois lotes que partiam.
Restava o da cozinha, sempre mais retardatário.
O velho abanava a cabeça. Ao ver assomar à porta sua mulher, disse:
— Sinhá Maria Rosa, pois o mineiro é bom mesmo.
— Pois não deixou ficar a Maria?
— Ué!… pois não leva, não? Interrogou a velha sem ocultar seu desapontamento.
— Não, sinhá Maria!
— Deus é que o há de ajudar! Deus é que o há de ajudar! repetia a velha com esforço, porque sua intenção era desobrigar-se de sustentar a filha.
Partia o Disponível em: www.oswaldt.com.br/serigote-boiadeiro.
Adiante, voltou-se; Maria enxugava os olhos, debruçada no peitoril. O mineiro parecia fascinado. Mais longe ouviu Pingo d’Água cantando:
Meu beija-flor da campina.
Que tiveste o teu condão:
Leva no bico a saudade
Ao bem do meu coração.
O sol, a essa hora, calcinava a estrada poeirenta da catinga. Os animais turravam e gemiam por desafogo.

CRITÉRIOS DE EDIÇÃO
CRITÉRIOS GERAIS DA HIPEREDIÇÃO
Para a elaboração da hiperedição, foram adotados os critérios e princípios estabelecidos por Shillingsburg (1993) e Barreiros (2013), com os acréscimos e adaptações necessários, adequados aos objetivos específicos da pesquisa. Nessa edição, deverão constar, entre outros, os seguintes elementos:
a) A edição interpretativa do texto editado, permitindo níveis de visualização e ampliação da imagem;
b) A transcrição do texto sobre a imagem digital com opção de zoom;
c) A edição para impressão;
d) A edição com hiperlink para visualizar as correções e as variantes textuais em janelas ou tooltips;
e) A barra com o dossiê arquivístico, contendo os paratextos e informações adicionais organizadas em forma de rizoma;
f) Espaço para acessar a descrição paleográfica do texto;
g) Quadro de avisos para informar os acréscimos e correções;
h) A barra com atividades pedagógicas, contendo conteúdo para a formação leitora do literária.
Critérios adotados na edição interpretativa
Para a edição interpretativa do romance Maria Dusá, foram tomados como base o folhetim publicado no Diário de Notícias (1908-1909) e a primeira edição em livro (1910), ambos realizados em vida do autor. A preparação seguiu critérios fundamentados nas normas de Cambraia (2005), com adaptações às particularidades do texto e aos objetivos da pesquisa. Entre os principais procedimentos adotados, destacam-se:
a) Respeitar o seccionamento do texto-base em capítulos, bem como a sua paragrafação;
b) Manter a pontuação original;
c) Manter as palavras destacas em itálico;
d) Atualizar a grafia do texto de acordo com a ortografia vigente, em vigor no Brasil desde 2009, conforme o Decreto nº 6.584/2008. Ressalva-se, entretanto, a manutenção das grafias que reproduzem a modalidade oral da língua, particularmente nos trechos correspondentes à fala das personagens, que serão preservadas tal como aparecem no texto original;
e) Acentuar conforme as normas vigentes, salvo quando se tratar de registros da
oralidade;
f) Antropônimos não serão uniformizados de acordo com a ortografia atual, em virtude de existirem diversas grafias para o mesmo nome. Sendo assim, serão mantidos como no texto de base;
g) Inserir as notas próprias do texto-base (Chardron, 1910) e do texto da Série Bom Livro/Edição Didática (Ática, 1978);
h) Inserir notas explicativas e críticas do filólogo ao pé da página.

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