MARIA DUSÁ

Maria Dusá

(GARIMPEIROS)

Romance de costumes sertanejos e chapadistas

Índice

II

Sol alto, a tropa milhada Milhada: termo regional da linguagem tropeira que designa a tropa organizada em fila, com os animais dispostos em suas posições habituais, pronta para partir.
e engangalhada Engangalhada: termo popular do sertão baiano. Diz-se da tropa já carregada, com cangalhas e bruacas presas aos animais de carga.
, esperava a hora de arribar Arribar: significa partir, seguir viagem ou levantar acampamento. É uma expressão regional usada em áreas rurais do Nordeste brasileiro e do sertão baiano, com presença marcante na Chapada Diamantina e em outras regiões por onde circulavam tropeiros e viajantes.
. Os camaradas almoçavam. Enquanto arreavam o ruão Ruão: cavalo que possui uma pelagem composta por pelos brancos e levemente acastanhados ou pelos brancos com manchas escuras e arredondadas.
, o mineiro, reatando a conversa interrompida com o Raymundo, afirmava:

— É como digo: por menos de cinco mala-reis Mala-reis: forma popular e regional de dizer mil-réis, antiga unidade monetária usada no Brasil até o ano de 1942. Um “mala-reis” correspondia a mil réis (1$000). Expressões como “por menos de cinco mala-reis” eram usadas para indicar quantias muito pequenas, quase simbólicas, consideradas de pouco valor à época.
não vai um celamim Celamim: antiga medida de capacidade para secos e equivalente à 16.ª parte da unidade de medida agrária (alqueire), ou 2,27 litros.
para ninguém. O sal da terra pode-se achar mais em conta; o sal de Baixo, não. A tropa está morta. Não está vendo? Não há tropa que suba, nem desça. A estrada está que nem um fiapo de capim manso Fiapo de capim manso: no contexto apresentado, a expressão é usada para descrever uma estrada estreita, quase imperceptível. A comparação com um fiapo sugere algo fino e difícil de enxergar. Já o termo “capim manso” refere-se a um tipo de capim geralmente rasteiro, delicado, fácil de manejar e que pode servir de alimento para o gado.
. Onde tem, nalgum ponto, é amargoso, capim brabo e fraco Amargoso, capim brabo e fraco: expressões que indicam vegetação de baixa qualidade para o pasto. Referem-se a plantas daninhas, capins que nascem espontaneamente, de difícil manejo e com baixo valor nutritivo, sendo insuficientes para a pastagem.
. Desde que saí da Serra Nova, quase não descansei. Cheguei em S. Félix, achei logo frete inteirado para Maracá Maracá: na região da Chapada Diamantina, na Bahia, existe o município de Maracás, que integrava as antigas rotas de tropeiros e garimpeiros durante o ciclo do ouro e dos diamantes.
. Aí tampei Tampei: no contexto sertanejo e dos tropeiros, tampei é o verbo tampar no pretérito, que significa fechar, cobrir, proteger ou guardar algo, especialmente relacionado à carga transportada, como no caso da tropa de sal.
a tropa de sal, e ia para casa. Mas no Gavião soube que na Lavra do Mucugê, sal e toucinho estão bons. Então troquei um bocado de sal por toucinho e aqui vou eu…

— Ah! seu Ricardo, interrompeu o velho, nós estamos perguntando por perguntar. Como já disse, tivemos criação e dinheiro, mas hoje não temos nada. Se sua mercê der um celamim por meio cobre Meio cobre: expressão popular utilizada para se referir a uma quantia extremamente pequena de dinheiro. A palavra “cobre” refere-se às antigas moedas de cobre, metal associado às moedas de menor valor, especialmente nos séculos passados.
, pois nem assim podemos comprar. Faz dois meses que não sabemos o que é uma pedra de sal na boca. Vivemos de raiz do mato, fruta brava e palmito cozido sem sal!

— Na verdade! comentou o mineiro, sorvendo após uma fumaça do pito de Baependi Pito de Baependi: refere-se a cigarro artesanal, geralmente feitos com fumo de rolo ou tabaco natural, associado à cidade de Baependi, em Minas Gerais.
; para quem já teve, dói muito!

— E todo o mundo destas beiradas! Acrescentou o velho, pondo a prumo a cabeça, que se assemelhava à de um esqueleto.

— E por que não vão para as Lavras? Inquiriu o mineiro; lá está tudo caro, mas ainda não se come raiz de pau.

— Que é da força pra caminhar, meu senhor?! Atalhou a velha; e ainda para sustentar uma porção de gente que só tem pele e osso?! Sua mercê quer ver?

E a mulher, com cara de fúria, gritou em voz esganiçada:

— Ó João, chama tuas irmãs!

Apareceu um rapazinho de uns 14 anos, coberto de trapos que foram camisa e calções, muito sujos, predominando a cor vermelha da terra que habitava.

— Chama tuas irmãs! repetiu a mulher que armava assim uma cena de efeito para obter alguma esmola.

Em alguns momentos surdiu à porta da varanda um grupo de três moças, parecendo ter 15 anos a mais nova.

E essa mãe, a quem a fome tirara certamente todo o amor maternal e todo o pudor feminil, se é que em tempo algum o teve realmente, levantava, sacrilegamente, os trapos que cobriam os ombros e seios e essas pobres criaturas, para que o mineiro, certificando-se de sua miséria, pela magreza extrema de suas filhas, se compadecesse ao mesmo tempo. Ao aproximar-se, porém, da mais velha, que poderia contar 18 anos, esta recuou um passo. Apesar da fome, corava e reagia.

Ó xente, Maria!! que é que tem o homem ver tua magreza?!

Duas lágrimas brotaram dos olhos da moça que sentou-se no pavimento, apoiando a cabeça sobre os joelhos.

— Menina tola! Quem tem vergonha morre de fome!

No terreiro, ao longe, Pingo d’Água começou a cantar em dueto com um companheiro, enquanto descansavam o almoço.

— Deixe a moça, Dona, disse o mineiro penalizado.

— Levanta a cabeça, Maria! Insistia a velha, com o olhar chispando de ódio e, fingindo um sorriso, acrescentou, como gracejando: — Ele quer te levar; tu queres ir?

E, ao mesmo tempo, fingindo uma ameaça que, entretanto, exprimia sua verdadeira intenção, afirmou:

— Se ele desse um celamim de sal, bem que eu te dava para cozinhar na casa dele.

— É que nem isso ela vale, obtemperou o velho, interrompendo um cochilo.

O mineiro, de cabeça baixa, pitava, em silêncio, meditando sem dúvida nas aberrações possíveis da natureza humana, e no que, a esse respeito, tinha visto, desde criança, em suas viagens.

Ao levantar a cabeça, deu com o olhar na moça. Notou, então, que, apesar da magreza, Maria conservava uns tons de beleza, apenas esmaecidos pela fome. Os olhos negros e grandes pareciam, nesse momento, refletir um braseiro; o rosto moreno, emoldurando-se pelos cabelos lisos e corredios que se desgrenhavam nos ombros, patenteava longo martírio. Não inspirava sensualidade, porém amor e compaixão.

— Pronto, patrão! Disse um dos camaradas.

— Carrega! Ordenou Ricardo, em voz pausada, voltando-se para o camarada.

— E sua mercê tinha coragem de dar um celamim de sal pela Maria? interrogou o velho Raymundo, em tom de desenxabida chocarreirice Desenxabida chocarreirice: expressão utilizada para descrever um tom de fala irônico ou zombeteiro, porém sem graça. No contexto apresentado, o velho Raymundo adota esse tom ao se referir à própria filha, Maria, revelando uma atitude machista, desrespeitosa e carregada de desprezo, com a clara intenção de diminui-la e desvalorizá-la.
.

— Até mais, se não fosse pecado e crime comprar gente forra, respondeu o mineiro, supondo que o velho gracejava:

— Estou falando sério, asseverou o velho; sua mercê não sabe o que é comer palmito sem sal, por necessidade.

— Compro, disse o mineiro, tornando-se vermelho.

— Está dito, bradou a velha, apanhando num torno da varanda uma cuia Cuia: também chamada de cabaça ou coité, é o fruto da árvore conhecida como cabaceira ou cuieira, cujo nome científico é Crescentia cujete. Seu fruto possui uma casca dura e arredondada, ideal para ser esvaziado, seco e utilizado como recipiente. No nordeste brasileiro, a “cuia” é comumente utilizada como medida caseira em contextos rurais.
grande, em que devia receber o preço de sua filha mais velha; aqui está esta cuia que é um celamim certinho.

O mineiro gritou ao cuca e mandou trazer um celamim de sal, um lanho Lanho: corte ou talho profundo. No contexto regional, refere-se a tiras compridas e finas de carne, especialmente toucinho.
de toucinho e um pedaço de carne.

Marido e mulher não sabiam de que modo exprimiriam seu contentamento e gratidão. O mineiro é que não contava com semelhante gratidão. Num açodamento Açodamento: pressa com que se faz alguma coisa, geralmente em excesso e sem reflexão. (Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, https://dicionario.priberam.org/a%C3 %A7odamento).
indescritível, a velha foi suspender ao fumeiro o saquinho de sal, a carne e o toucinho, cujo cheiro só, lhe causava um prazer infantil.

Arrochando os últimos animais do seu lote dianteiro, Pingo d’Água cantava propositadamente:

Nesse mundão tenho visto!

Mas aqui já é sofrê! Aqui é que filho chora,

Filho chora e mãe não vê!

Ao atar à corda do fumeiro, a velha resmungava, respondendo ao trovista, como se pudesse ser ouvida:

— Vê, sim; mais O termo faz referência à conjunção adversativa “mas”, que indica oposição; no entanto, foi grafado como “mais”, advérbio que indica adição, para representar a marca de oralidade do personagem.
a fome é que tem cara de herege!

No peitoril, o Raymundo, numa espécie de delírio, esfregava as mãos de contente, e de olhos fechados, prelibava o gozo Prelibava o gozo: forma verbal composta que une o verbo prelibar (provar antes, experimentar previamente) ao substantivo gozo (prazer intenso, satisfação, alegria). No contexto apresentado, Raymundo saboreava mentalmente, antecipadamente, o prazer que sentiria ao comer um pedaço de carne gorda.
de um pedaço de carne gorda, que, havia meses, nem ao menos lhe fora dado cheirar.

As duas irmãs de Maria tinham-se retirado, chorando.

Então, dirigindo-se à vendida, que soluçava convulsivamente, o mineiro falou:

— Não chore, não, moça; seus pais venderam a filha, mas a filha não foi comprada: fica aí, com eles; somente lembre-se que o mineiro se chama Ricardo Brandão. Aqui está mais uma lembrança, que eu destinava a uma irmã.

E assim dizendo, tirou da escarcela uma pequena medalha de prata e a entregou com mão trêmula. A moça recebeu a lembrança e disse por entre soluços:

— Deus ajude a vosmecê, e lhe dê feliz viagem!

Partia o lote dianteiro. Depois de rasgada cortesia com o chapéu de couro, e um até outra vista Até outra vista: expressão utilizada como forma de despedida, para indicar que espera ver ou encontrar a pessoa novamente. É semelhante a dizer “até logo” ou “até a próxima”.
, a quem estava no peitoril, Pingo d’Água soltou dois gritos guturais para ativar o lote, e seguiu cantando:

Guardo o mimo que me deste

Na hora da retirada:

Quem paga amor com firmeza

Não fica devendo nada!

O velho Raymundo mal voltara a si da surpresa. Nos seus tempos de miséria, não tinha visto generosidade igual. Disse, por fim, desenvolvendo a elevada estatura e acenando com os compridos braços esqueléticos:

— Pois, senhor Ricardo Brandão, aqui fica este velho, que, se não morrer, ainda pode servir pra botar seu animal no pasto, quando sua mercê passar por aqui outra vez.

Depois de uma pequena pausa, murmurou:

— É verdade! bem se diz que o mineiro tem o coração nas mãos!

Ricardo mordia a ponta do cigarro, olhando para os dois lotes que partiam.

Restava o da cozinha, sempre mais retardatário.

O velho abanava a cabeça. Ao ver assomar à porta sua mulher, disse:

— Sinhá Maria Rosa, pois o mineiro é bom mesmo.

— Pois não deixou ficar a Maria?

— Ué!… pois não leva, não? Interrogou a velha sem ocultar seu desapontamento.

— Não, sinhá Maria!

— Deus é que o há de ajudar! Deus é que o há de ajudar! repetia a velha com esforço, porque sua intenção era desobrigar-se de sustentar a filha.

Partia o lote do coice Lote do coice: emprega-se para designar a retaguarda do rancho, o último grupo do comboio. (N. E.) (Série Bom Livro, 1978, p.16).
. Ricardo correu a vista no rancho, apertou no mento a correia do chapéu de coiro Coiro: termo utilizado como sinônimo de couro, refere-se à pele grossa e resistente de certos animais. Para a confecção de vestimentas e acessórios, utiliza-se o couro curtido, isto é, a pele de animais que passou por um processo químico ou físico-químico denominado curtimento, que visa tornar o material mais durável e resistente.
curtido, amarrou as esporas, despediu-se de todos, trocando com Maria um aperto de mão, e saltou no seligote Seligote: variação regional de serigote, designa um tipo de sela rústica, firmada sobre o lombo do animal, utilizada para montaria. É um termo comum em regiões sertanejas do Brasil, especialmente no contexto da vida rural e da cultura vaqueira.
Disponível em: www.oswaldt.com.br/serigote-boiadeiro.
, esporeando o ruão energicamente.

Adiante, voltou-se; Maria enxugava os olhos, debruçada no peitoril. O mineiro parecia fascinado. Mais longe ouviu Pingo d’Água cantando:

Meu beija-flor da campina.

Que tiveste o teu condão:

Leva no bico a saudade

Ao bem do meu coração.

O sol, a essa hora, calcinava a estrada poeirenta da catinga. Os animais turravam e gemiam por desafogo.


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