MARIA DUSÁ

Maria Dusá

(GARIMPEIROS)

Romance de costumes sertanejos e chapadistas

Índice

IV

Ao alvorecer, Ricardo estava de pé. Em tempo de verão, é a hora mais aprazível do dia, na região das catingas. O ar fresco e puro, o aroma silvestre e indefinível, que se respira, restituem ao organismo combalido as energias precisas para a labutação quotidiana.

Ao levantar-se o patrão, o cuca trouxe-lhe água para o rosto, e, após, o cuitezinho de café, que ele, como mineiro de gema, sorveu vagarosamente, aos goles poupados, como pratica o experimentador de vinhos. Após o último gole, levantou-se da rede, deixou o cuité Cuité: pequeno recipiente, geralmente feito da casca seca do fruto da árvore cuitezeiro. É culturalmente usado para servir café, água ou outras bebidas em regiões do interior do Brasil, especialmente no sertão.
sobre uma bruaca, puxou da bainha Bainha: capa ou estojo de couro ou material resistente onde a faca ou outro tipo de lâmina é guardada e geralmente presa à cintura.
Imagem retirada do site Pixabay.
a Parnaíba Parnaíba: tipo de faca longa, com lâmina fina e ponta aguda, bastante utilizada por vaqueiros, tropeiros e sertanejos, tanto no manejo de animais quanto em tarefas cotidianas, como picar fumo.
Disponível em www.tuneldotempoleiloes.com.br.
, picou fumo, que esfarinhou entre as palmas, prendendo a faca, de ponta para cima, entre o polegar e o indicador; depois do que, apertando o fumo picado na mão esquerda, cortou uma palha de milho e pôs-se a alisá-la, demoradamente, como que absorvido num pensamento profundo.

Dominava o silêncio do ermo. Os camaradas tinham partido a campear, desde as primeiras barras do dia.

Para Ricardo e o cozinheiro, esse silêncio era apenas interrompido pela fervura do caldeirão da feijoada com toucinho e pernil. O mineiro continuava a meditar. Depois de sorver algumas fumaças do cigarro, sentiu certa lassidão Lassidão: cansaço, fadiga, falta de força ou estímulo para agir.
, que o obrigou a sentar-se.

Quando os primeiros raios do sol iluminavam as cristas das serras do poente, ouviu-se o som de um cincerro e as conhecidas vibrações do solo, indicando um tropear ao longe. Em poucos momentos ouviram-se assobios e gritos guturais dos camaradas, tangendo a tropa. Ao chegar esta ao rancho, Ricardo notou de um lance d’olhos que faltavam animais.

De fato, os camaradas queixavam-se de que, por não haver pasto, a tropa esparramara na catinga.

— Faltavam Boneca, Rompante, Bem-feito e outros; porém que deviam estar aí mesmo, nalgum encosto da serra.

— Que haviam de aparecer; até a sede ajudava a botá-los pra fora. E depois de tais afirmativas, os tropeiros foram ao café.

Estava em expectativa o que constitui o terror dos viajantes: uma falha forçada Falha forçada: situação causada por uma circunstância adversa ou por um erro grave, que resulta em uma parada ou pouso inesperado, sem alternativas de solução imediata.
num pouso sem recurso.

Ricardo, entretanto, não se mostrava contrariado com essa expectativa; parecia até satisfeito. Dir-se-ia que o acaso vinha favorecer a uma tendência nova de seu espírito, subjugado pela paixão nascente. Segundo afirmou, tempos adiante, nesses momentos tinha ímpetos de voltar, tomar na garupa do Ruão a sua cativa, e associá-la de qualquer modo ao seu destino. Mas esses pensamentos foram passageiros. Aprendera de sua velhinha mãe a respeitar uma donzela, qualquer que fosse o seu estado e condição. Além disso, era sinceramente católico e nos princípios rudimentares de sua religião encontrava sempre uma antemural Antemural : construção que serve de defesa, colocada diante de uma muralha principal. No sentido figurado, como apresentado no romance, representa qualquer forma de proteção ou barreira contra algo considerado perigoso ou indesejado.
contra a tentação da carne voluptuosa, e contra os maus pensamentos. Afora esses princípios ou por excesso deles, era supersticioso. Sabia orações prodigiosas contra todos os males que o pudessem afligir. O mineiro fez-se forte e rezou contritamente. O efeito da autossugestão foi miraculoso. Ricardo viu tudo com mais clareza.

Gostava de Maria, porém não podia se casar com ela, e muito menos tê-la por amante. Tinha praticado uma boa ação e não havia de destruir essa lembrança com uma doidice. Ali, era seguir d’olhos fechados o plano velho. Chegar a Chapada Nova, vender o carregamento Carregamento: mercadorias ou produtos transportados de um lugar para outro, geralmente em tropas de animais ou veículos. Nas atividades de comércio antigo da Chapada Diamantina, o carregamento era fundamental para o sustento das comunidades e para a economia da região.
e a tropa, reservando apenas alguns animais para a viagem de retorno, e tentar a sorte nalgum garimpo rico. Se em princípio lhe desandasse a sorte, antes de entrar no cobre da tropa, seguiria para o Serro Serro: município brasileiro localizado no estado de Minas Gerais, pertencente à região geográfica imediata de Diamantina. Está localizado em uma área de relevo montanhoso, com serras, vales e rios que compõem um cenário típico da região do Espinhaço.
, a fim de comprar novos animais e recomeçar a vida. Se fosse feliz, voltaria mais tarde à Serra Nova, compraria uma fazenda de criação, que isso de andar em coice de tropa era cousa que nem ia nem vinha.

O sol alteava-se. Ao voltarem os camaradas com a tropa, que tinham levado a beber, Ricardo tornara-se resoluto; dava ordens mais terminantes. Ajudava, com presteza, a milhar os animais, que avançavam famintos, insistentes, com o beiço superior estendido e trêmulo, ora gaguejando uma espécie de rugido gutural, surdo; ora escoiceando-se e mordendo-se uns aos outros, murchando as orelhas, aos pinchos e aos guinchos, que os distribuidores de embornais aquietavam, distribuindo, também, murros a torto e a direito.

É esse constante lidar com animais em viagem o que faz do almocreve ou tropeiro uma entidade particular, um especialista de classe, que se não confunde
com o recoveiro ocasional Recoveiro ocasional: pessoa que transporta cargas ou mercadorias em lombo de animais. Desempenha uma função semelhante à dos almocreves ou tropeiros, mas de forma esporádica, em trajetos menores e sem exercer essa atividade como profissão principal.
.

O tropeiro tem uma idiossincrasia, uma gíria, um modo, um jeito todo seu, seja para se corresponder com os companheiros, seja para atalhar Atalhar: no contexto rural e sertanejo, a expressão, no trecho apresentado, significa ajustar, preparar ou arrumar algo rapidamente, especialmente equipamentos usados no trabalho diário, como as cangalhas dos animais.
uma cangalha, seja para alcear Alcear: levantar ou posicionar uma carga sobre o animal ou estrutura.
uma carga, ou arrochar um lote inteiro, dando a mesma inclinação a todas as agulhas Agulhas: no Nordeste, especialmente entre vaqueiros e tropeiros, pode significar haste de madeira ou estrutura que ajuda a travar ou estabilizar a carga sobre a cangalha — um suporte colocado no lombo de animais de carga. Essas agulhas são fundamentais para garantir que a carga fique firme durante os longos deslocamentos realizados pelo sertão.
. Para todo o ofício mais vale, de ordinário, a longa prática; mas o verdadeiro almocreve tem um instinto que causa pasmo aos ignorantes do ofício, como tem uma idiossincrasia que, observada, faz meditar um médico.

Assim, até para milhar Milhar: expressão utilizada no contexto rural para se referir ao ato de jogar ou distribuir milho, ou tipo de grão, como alimento para os animais.
animais reunidos, só um prático pode fazê-lo sem apanhar um couce, nem deixar se entornar o milho Entornar o milhar: expressão utilizada para indicar o ato de derramar o milho, por inexperiência ou desatenção, especialmente ao alimentar animais.
.

Distribuída a ração, o camarada de nome Felippe consultou:

— Hein, Pingo d’Água, você não acha que Boneca e Rompante tomaram por aqueloutro boqueirão que está mais acima?

— Acho. Aquela mula é mocambeira Mocambeira: adjetivo atribuído a animal que se esconde no mato.
que é uma desgraça!…

— Deixem de consultas, interveio o patrão; Benedito e Joaquim ficam pastorando; vocês dous sigam logo, que os animais estão aí mesmo e ainda hoje se pode fazer marcha Marcha: expressão usada por tropeiros e vaqueiros para se referir a uma viagem ou deslocamento, geralmente feito a pé ou com animais de carga ou montaria. Indica o ato de seguir caminho, percorrendo uma determinada distância, seja ela curta ou longa.
pequena para o Angico Angico: parada ou local de descanso na antiga rota dos viajantes e tropeiros pela Chapada Diamantina.
.

Os camaradas obedeceram e seguiram. Um pouco adiante, Felippe disse ao companheiro:

— Hein, Manuel? Você viu cumo o patrão tem estado zambuado Zambuado: expressão regional do Nordeste, de uso popular, que se refere a alguém que está triste, calado, emburrado ou de mau humor.
estes dias?

Mais hoje está com a vista mais alegre.

— Eu sei, moço! respondeu Pingo d’Água, e começou a cantar baixo, obrigando Felippe à segunda Segunda: no contexto apresentado, refere-se a fazer a segunda voz em uma canção, ou seja, cantar uma harmonia complementar à melodia principal.
, sem interromper o andar ligeiro:

O cravo pediu à rosa,

Que lhe desse o seu condão:

A rosa lhe deu espinho,

Mas o cravo não quis, não!

………………………………………….

A viola chora a prima,

A prima chora o bordão…

— O cravo pediu à rosa

Que lhe desse o seu condão!

&nbsp &nbsp &nbsp Eh! seu condão!…

O eco respondia ao longe nas quebradas da serra, porque, insensivelmente, tinham alteado a voz.

Dentro em pouco os campeadores desapareceram na catinga. Cada um tomou seu rumo.

No rancho, os animais que acabavam de comer milho, e dos quais eram tirados os embornais Embornais: sacolas feitas de tecido grosso, couro ou lona, usadas no pescoço ou nos arreios dos animais para guardar e servir alimentos, como milho ou farelo. São comuns em ambientes rurais, especialmente durante viagens ou paradas em ranchos.
, ficavam por ali, a turrar Turrar: ação dos animais de empurrar, cutucar ou remexer objetos com o focinho, testa ou chifres. Em alguns contextos, também pode significar resmungar, mugir baixinho ou emitir sons abafados, como fazem bois ou vacas quando estão impacientes ou incomodados.
, a babujar Babujar: molhar algo com saliva ou babar sobre ele, como fazem alguns animais ao mastigar sem engolir de imediato, deixando folhas ou objetos úmidos.
folha seca do chão ou a roer casca de pau.

Já se fazia sentir o tédio de uma folha Folha: o termo que aparece duas vezes neste parágrafo para indicar a parada forçada do rancho devido ao extravio de animais, parece ser devido a algum engano, uma vez que nas demais passagens em que se alude a esse fato diz-se falha (Cf. p. 21), ou, em dialeto popular, faia (acima). (N. E.) (Série Bom Livro, 1978, p.23).
, em que o dia parece mais longo; o sol mais quente, ou mais fria a chuva; as moscas mais importunas; o silêncio mais desanimador; e em que, tudo que não seja o burro aparecido Burro aparecido: expressão regional que pode ser usada para descrever algo ou alguém que aparece de forma inoportuna ou inesperada, trazendo desconforto ou irritação. No contexto do trecho, pode ser uma metáfora para algo que interrompe a tranquilidade, causando aborrecimento.
, ou o doente são, que não seja, enfim, a cessação da folha, traz aborrecimento.

Passou a hora do almoço manso. O sol despejava uma torrente de fogo. Em longas extensões o calor irradiava-se, como se a terra fosse a abóbada de um imenso forno quente.

Passou a turma de retirantes, que pediam esmolas por todos os santos. Sem molestá-los, Ricardo convenceu-os de que não podia dar o que não era seu.

Passou uma procissão de penitência, em preces (ad petendam pluviam) Ad pretendam pluviam: locução latina que significa “para pedir chuva”. (Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, https://dicionario.priberam.org/ ad%20petendam%20pluviam).
conduzindo uma imagem de Nossa Senhora do Alívio. Mudava-se, para uma casa distante, a residência da imagem, para que ela fizesse chover imediatamente.

Pela estrada afora o mulherio, aterrorizado com a seca e a fome, carregava pedras, gritando esganiçadamente Esganiçadamente: expressão que descreve um grito estridente, agudo e penoso, muitas vezes associado a uma sensação de desespero ou sofrimento.
como carpideiras egípcias Carpideiras egípcias: mulheres contratadas na antiga civilização egípcia para lamentar e chorar durante os rituais funerários. Elas expressavam a dor da perda de maneira dramática e intensa, contribuindo para o luto e a honra ao falecido.
em funerais de grande pompa.

O mineiro e os camaradas levantaram-se e descobriram-se à passagem da Santa.

A procissão desapareceu ao longe.

Passava a hora do almoço bravo Almoço bravo: expressão popular e regional que se refere a um almoço feito fora do horário usual, geralmente mais tarde do que o horário esperado ou desejado.
, e não vinham os animais! Uma dúvida surgiu no espírito do mineiro:

— Teriam furtado os animais?

Quis ir até ao rancho do africano, para indagar se havia ali tal costume; porém nesse momento aproximava-se o João, o sertanejo com o qual Ricardo travara conhecimento no dia anterior, e que, depois de saudar, falou:

Hein, meu patrão, com que está sua mercê de faia Faia: termo de uso coloquial e regional em algumas áreas do Nordeste, utilizado para se referir a “falha”. No contexto apresentado, “faia” é empregada para indicar um problema, especificamente a falta ou ausência de animais.
!

— Era verdade. O peior Peior: do latim (peior), quer dizer pior.
era que podiam estar furtados uns animais desaparecidos, respondeu Ricardo.

— Não tivesse susto, atalhou o sertanejo. Apesar da fome, o povo dali não furtava. Estava de pouco tempo, mas podia afirmar. Os animais apareceriam.

— Os anjos dissessem amém, respondeu Ricardo, coçando a cabeça, de impaciente.

Não esperou muito. Soou ao longe o prolongado grito do tropeiro, quando encontra o último animal sumido.

— Os anjos tinham dito amém, observou João.

Contente por isso, o mineiro abriu a bruaca da cozinha, cortou bom pedaço de carne, e deu-o ao sertanejo.

— Farinha é que não havia, acrescentou.

O sertanejo expandiu-se em agradecimentos:

— Pudesse contar com ele onde estivesse. Nunca se esqueceria daquela esmola de bom coração. Ia sempre para a Chapada, e lá estaria ao serviço do patrão.

E despediu-se. Decorrido algum tempo, chegaram os animais.

O mineiro desapontou. Estavam finos e varados de sede.

Ordenou que Felippe fosse dar-lhes de beber, enquanto o Manuel atalhava algumas cangalhas de seu lote, que estavam lambendo em vésperas de pisar Lambendo em vésperas de pisar: metáfora ou expressão regional que sugere uma situação em que algo ou alguém está quase prestes a agir ou a se mover, mas ainda está em um momento de preparação ou expectativa.
.

Determina a superstição dos tropeiros que se não descubram os lotes do rancho sem que estejam vistos todos os animais da tropa, porque o proceder contrário dificulta o aparecimento dos que estejam transviados, obrigando a falhar.

Assim, foi Pingo D’Água o primeiro a tirar de seu lote os couros que estavam tinindo com o calor. Desarrumou as cangalhas, lembrando que o próprio Diabo não quis ser tropeiro para não lidar com couro cru em tempo de sol quente, e, enquanto trabalhava, distraía-se:

Quem parte, parte chorando;

Quem fica vida não tem;

Não tem sono nem sossego,

Quem chegou a querer bem.

O canto era intermeado de socos para acamar ou espalhar a paina do talabardão Talabardão: cobertura de couro cru na armação ou madeira, que facilita a acomodação da carga nas cangalhas. (Dicionário Online de Português, https://www.dicio.com.br/ talabardao/).
Disponível em: www.modacountrysertaneja.com.br.
, nos pontos a atalhar.

Quem tiver cuidados, tenha

Mas nunca procure amar,

Que é pena que puxa pena

Sem nunca mais acabar.

Quem saiu de sua terra,

Se disponha a padecer;

Que a tristeza nunca solta

Quem tem alma pra sofrer.

Concertava com a voz do camarada o ruído causado pelo corrute Corrute: expressão regional, provavelmente relacionado ao som característico produzido por animais ao se moverem ou se alimentarem.
dos animais vindos, triturando o milho.

Chegou a hora de suspender cargas. — O sol declinava; mas ainda havia tempo de alcançar pouso de melhor arrumação, daí a légua e meia.

Os camaradas almoçaram. Ricardo almoçou pouco. Apesar de seu trabalho pensava, de quando em quando, em Maria, sem, contudo, se perturbar, como a princípio.

O primeiro lote partiu. A cabeçada agitava-se, vibrando com o desânimo peculiar às tropas batidas Tropas Batidas: no contexto apresentado, a expressão é usada para descrever um grupo de animais de carga que já preparados ou arrumados para a jornada se mostram exauridos e fatigados de longas viagens.
. Seguiram-se o segundo e o terceiro lotes. Arrochou-se a última carga do traseiro. Ricardo, ao calçar as esporas, relanceava o olhar pelo rancho para verificar se acaso ficara alguma coisa.

Por pior que seja um rancho em que o viajante passou algumas horas, causa- lhe sempre alguma saudade o deixá-lo, porque, ao menos, acode-lhe ao pensamento a dúvida ou possibilidade de o tornar a ver algum dia.

Nessa tarde a tropa derrubou Derrubou: no contexto de tropeiros e vaqueiros, significa que a tropa (grupo de animais de carga) chegou e se acomodou ou parou em um local para descansar ou pernoitar.
no Angico.


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