Maria Dusá
(GARIMPEIROS)
Romance de costumes sertanejos e chapadistas
IV
Ao alvorecer, Ricardo estava de pé. Em tempo de verão, é a hora mais aprazível do dia, na região das catingas. O ar fresco e puro, o aroma silvestre e indefinível, que se respira, restituem ao organismo combalido as energias precisas para a labutação quotidiana.
Ao levantar-se o patrão, o cuca trouxe-lhe água para o rosto, e, após, o cuitezinho de café, que ele, como mineiro de gema, sorveu vagarosamente, aos goles poupados, como pratica o experimentador de vinhos. Após o último gole, levantou-se da rede, deixou o Imagem retirada do site Pixabay.
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Dominava o silêncio do ermo. Os camaradas tinham partido a campear, desde as primeiras barras do dia.
Para Ricardo e o cozinheiro, esse silêncio era apenas interrompido pela fervura do caldeirão da feijoada com toucinho e pernil. O mineiro continuava a meditar. Depois de sorver algumas fumaças do cigarro, sentiu certa
Quando os primeiros raios do sol iluminavam as cristas das serras do poente, ouviu-se o som de um cincerro e as conhecidas vibrações do solo, indicando um tropear ao longe. Em poucos momentos ouviram-se assobios e gritos guturais dos camaradas, tangendo a tropa. Ao chegar esta ao rancho, Ricardo notou de um lance d’olhos que faltavam animais.
De fato, os camaradas queixavam-se de que, por não haver pasto, a tropa esparramara na catinga.
— Faltavam Boneca, Rompante, Bem-feito e outros; porém que deviam estar aí mesmo, nalgum encosto da serra.
— Que haviam de aparecer; até a sede ajudava a botá-los pra fora. E depois de tais afirmativas, os tropeiros foram ao café.
Estava em expectativa o que constitui o terror dos viajantes: uma
Ricardo, entretanto, não se mostrava contrariado com essa expectativa; parecia até satisfeito. Dir-se-ia que o acaso vinha favorecer a uma tendência nova de seu espírito, subjugado pela paixão nascente. Segundo afirmou, tempos adiante, nesses momentos tinha ímpetos de voltar, tomar na garupa do Ruão a sua cativa, e associá-la de qualquer modo ao seu destino. Mas esses pensamentos foram passageiros. Aprendera de sua velhinha mãe a respeitar uma donzela, qualquer que fosse o seu estado e condição. Além disso, era sinceramente católico e nos princípios rudimentares de sua religião encontrava sempre uma
Gostava de Maria, porém não podia se casar com ela, e muito menos tê-la por amante. Tinha praticado uma boa ação e não havia de destruir essa lembrança com uma doidice. Ali, era seguir d’olhos fechados o plano velho. Chegar a Chapada Nova, vender o
O sol alteava-se. Ao voltarem os camaradas com a tropa, que tinham levado a beber, Ricardo tornara-se resoluto; dava ordens mais terminantes. Ajudava, com presteza, a milhar os animais, que avançavam famintos, insistentes, com o beiço superior estendido e trêmulo, ora gaguejando uma espécie de rugido gutural, surdo; ora escoiceando-se e mordendo-se uns aos outros, murchando as orelhas, aos pinchos e aos guinchos, que os distribuidores de embornais aquietavam, distribuindo, também, murros a torto e a direito.
É esse constante lidar com animais em viagem o que faz do almocreve ou tropeiro uma entidade particular, um especialista de classe, que se não confunde
com o
O tropeiro tem uma idiossincrasia, uma gíria, um modo, um jeito todo seu, seja para se corresponder com os companheiros, seja para
Assim, até para
Distribuída a ração, o camarada de nome Felippe consultou:
— Hein, Pingo d’Água, você não acha que Boneca e Rompante tomaram por aqueloutro boqueirão que está mais acima?
— Acho. Aquela mula é
— Deixem de consultas, interveio o patrão; Benedito e Joaquim ficam pastorando; vocês dous sigam logo, que os animais estão aí mesmo e ainda hoje se pode fazer
Os camaradas obedeceram e seguiram. Um pouco adiante, Felippe disse ao companheiro:
— Hein, Manuel? Você viu cumo o patrão tem estado
Mais hoje está com a vista mais alegre.
— Eu sei, moço! respondeu Pingo d’Água, e começou a cantar baixo, obrigando Felippe à
O cravo pediu à rosa,
Que lhe desse o seu condão:
A rosa lhe deu espinho,
Mas o cravo não quis, não!
………………………………………….
A viola chora a prima,
A prima chora o bordão…
— O cravo pediu à rosa
Que lhe desse o seu condão!
      Eh! seu condão!…
O eco respondia ao longe nas quebradas da serra, porque, insensivelmente, tinham alteado a voz.
Dentro em pouco os campeadores desapareceram na catinga. Cada um tomou seu rumo.
No rancho, os animais que acabavam de comer milho, e dos quais eram tirados os
Já se fazia sentir o tédio de uma
Passou a hora do almoço manso. O sol despejava uma torrente de fogo. Em longas extensões o calor irradiava-se, como se a terra fosse a abóbada de um imenso forno quente.
Passou a turma de retirantes, que pediam esmolas por todos os santos. Sem molestá-los, Ricardo convenceu-os de que não podia dar o que não era seu.
Passou uma procissão de penitência, em preces
Pela estrada afora o mulherio, aterrorizado com a seca e a fome, carregava pedras, gritando
O mineiro e os camaradas levantaram-se e descobriram-se à passagem da Santa.
A procissão desapareceu ao longe.
Passava a hora do
— Teriam furtado os animais?
Quis ir até ao rancho do africano, para indagar se havia ali tal costume; porém nesse momento aproximava-se o João, o sertanejo com o qual Ricardo travara conhecimento no dia anterior, e que, depois de saudar, falou:
— Hein, meu patrão, com que está sua mercê de
— Era verdade. O
— Não tivesse susto, atalhou o sertanejo. Apesar da fome, o povo dali não furtava. Estava de pouco tempo, mas podia afirmar. Os animais apareceriam.
— Os anjos dissessem amém, respondeu Ricardo, coçando a cabeça, de impaciente.
Não esperou muito. Soou ao longe o prolongado grito do tropeiro, quando encontra o último animal sumido.
— Os anjos tinham dito amém, observou João.
Contente por isso, o mineiro abriu a bruaca da cozinha, cortou bom pedaço de carne, e deu-o ao sertanejo.
— Farinha é que não havia, acrescentou.
O sertanejo expandiu-se em agradecimentos:
— Pudesse contar com ele onde estivesse. Nunca se esqueceria daquela esmola de bom coração. Ia sempre para a Chapada, e lá estaria ao serviço do patrão.
E despediu-se. Decorrido algum tempo, chegaram os animais.
O mineiro desapontou. Estavam finos e varados de sede.
Ordenou que Felippe fosse dar-lhes de beber, enquanto o Manuel atalhava algumas cangalhas de seu lote, que estavam
Determina a superstição dos tropeiros que se não descubram os lotes do rancho sem que estejam vistos todos os animais da tropa, porque o proceder contrário dificulta o aparecimento dos que estejam transviados, obrigando a falhar.
Assim, foi Pingo D’Água o primeiro a tirar de seu lote os couros que estavam tinindo com o calor. Desarrumou as cangalhas, lembrando que o próprio Diabo não quis ser tropeiro para não lidar com couro cru em tempo de sol quente, e, enquanto trabalhava, distraía-se:
Quem parte, parte chorando;
Quem fica vida não tem;
Não tem sono nem sossego,
Quem chegou a querer bem.
O canto era intermeado de socos para acamar ou espalhar a paina do Disponível em: www.modacountrysertaneja.com.br.
Quem tiver cuidados, tenha
Mas nunca procure amar,
Que é pena que puxa pena
Sem nunca mais acabar.
Quem saiu de sua terra,
Se disponha a padecer;
Que a tristeza nunca solta
Quem tem alma pra sofrer.
Concertava com a voz do camarada o ruído causado pelo
Chegou a hora de suspender cargas. — O sol declinava; mas ainda havia tempo de alcançar pouso de melhor arrumação, daí a légua e meia.
Os camaradas almoçaram. Ricardo almoçou pouco. Apesar de seu trabalho pensava, de quando em quando, em Maria, sem, contudo, se perturbar, como a princípio.
O primeiro lote partiu. A cabeçada agitava-se, vibrando com o desânimo peculiar às
Por pior que seja um rancho em que o viajante passou algumas horas, causa- lhe sempre alguma saudade o deixá-lo, porque, ao menos, acode-lhe ao pensamento a dúvida ou possibilidade de o tornar a ver algum dia.
Nessa tarde a tropa

CRITÉRIOS DE EDIÇÃO
CRITÉRIOS GERAIS DA HIPEREDIÇÃO
Para a elaboração da hiperedição, foram adotados os critérios e princípios estabelecidos por Shillingsburg (1993) e Barreiros (2013), com os acréscimos e adaptações necessários, adequados aos objetivos específicos da pesquisa. Nessa edição, deverão constar, entre outros, os seguintes elementos:
a) A edição interpretativa do texto editado, permitindo níveis de visualização e ampliação da imagem;
b) A transcrição do texto sobre a imagem digital com opção de zoom;
c) A edição para impressão;
d) A edição com hiperlink para visualizar as correções e as variantes textuais em janelas ou tooltips;
e) A barra com o dossiê arquivístico, contendo os paratextos e informações adicionais organizadas em forma de rizoma;
f) Espaço para acessar a descrição paleográfica do texto;
g) Quadro de avisos para informar os acréscimos e correções;
h) A barra com atividades pedagógicas, contendo conteúdo para a formação leitora do literária.
Critérios adotados na edição interpretativa
Para a edição interpretativa do romance Maria Dusá, foram tomados como base o folhetim publicado no Diário de Notícias (1908-1909) e a primeira edição em livro (1910), ambos realizados em vida do autor. A preparação seguiu critérios fundamentados nas normas de Cambraia (2005), com adaptações às particularidades do texto e aos objetivos da pesquisa. Entre os principais procedimentos adotados, destacam-se:
a) Respeitar o seccionamento do texto-base em capítulos, bem como a sua paragrafação;
b) Manter a pontuação original;
c) Manter as palavras destacas em itálico;
d) Atualizar a grafia do texto de acordo com a ortografia vigente, em vigor no Brasil desde 2009, conforme o Decreto nº 6.584/2008. Ressalva-se, entretanto, a manutenção das grafias que reproduzem a modalidade oral da língua, particularmente nos trechos correspondentes à fala das personagens, que serão preservadas tal como aparecem no texto original;
e) Acentuar conforme as normas vigentes, salvo quando se tratar de registros da
oralidade;
f) Antropônimos não serão uniformizados de acordo com a ortografia atual, em virtude de existirem diversas grafias para o mesmo nome. Sendo assim, serão mantidos como no texto de base;
g) Inserir as notas próprias do texto-base (Chardron, 1910) e do texto da Série Bom Livro/Edição Didática (Ática, 1978);
h) Inserir notas explicativas e críticas do filólogo ao pé da página.

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