Maria Dusá
(GARIMPEIROS)
Romance de costumes sertanejos e chapadistas
III
Poucos, da atual geração de baianos, desconhecem, pelo menos de tradição, o que foi, para o povo sertanejo, o ano de 1860. De quantas secas periódicas têm devastado os sertões brasileiros, raras legaram tão horrível memória, como a geralmente conhecida por seca de 60, aliás 59, de que resultou a crise alimentícia denominada fome de 60.
Na crença dos adoradores de um Deus que pune e premeia, nunca se revelou mais evidente e punitivo o seu braço irado e inexorável.
Nesse ano de tristíssimas recordações a
Em grandes extensões de terreno não se vislumbrava sinal de clorofila senão no Icó, a planta que resiste a todas as secas, e nas diversas espécies de cactos, entre as quais sobressaíam o Disponível em: www.naturezabela.com.br.
A catinga (mato esbranquiçado) justificava de modo perfeito a denominação tupi, dada a essa vegetação enfezada.
Para cúmulo da penúria vegetal e animal, os incêndios multiplicavam-se nos campos e carrascos. Propósito ou descuido de caminhante ou caçador, o fogo fortalecia a ação destruidora do sol.
No céu, nenhum sinal promissor de chuva, e já ia em meio o ano.
Como sucede nos anos secos, nuvens tênues e esgarçadas passavam alto, muito alto, em diversas direções, como se evitassem baixar sobre a terra maldita.
Já não tinha encantos o alvorecer nas terras sertanejas. Um silêncio pesado substituíra a ruidosa alegria do passaredo farto, a saltitar em meio da verdura primaveril doutros tempos.
Os arrebóis vespertinos aparentavam apenas a beleza trágica de quotidianos incêndios em vastas e longínquas regiões do ocidente.
De resto, o céu em fogo dizia bem com o alvejar das ossadas dispersas pelos campos desolados.
As fazendas mais abastadas estavam quase desertas. Dificilmente se ouvia um mugido, mesmo tristonho e cavernoso. Mais de um fazendeiro rico
Pequenos lavradores e criadores, transformados em
Nas estradas, de espaço a espaço, encontravam-se quadros vivos da mais completa consternação. Aqui, um velho, cercado de filhos e netos famintos, num cirro interminável de durar dias e dias; ali, um desventurado pedindo pelo amor de Deus um punhado de farinha para que o filho pudesse morrer; adiante a figura esquelética doutra
Viajando no
Tendo arribado do pouso do Raymundo Alves, o mineiro mandou derrubar no
Junto à casa de um velho africano, derrubaram-se as cargas.
Feito o rancho, isto é, arrumadas em dupla fileira as bruacas e surrões de sal, sobrepostas as cangalhas, — peitoral para a frente, a fim de se não atrasar a viagem, — aceso o fogo e armada a
O sol estava a cravar-se.
Ricardo Brandão dirigiu-se ao velho africano, que tecia esteiras de Disponível em: commons.wikimedia.org.
— Se não havia pasto, perto ou longe.
— Passo qui é, sinhô?! Exclamou o preto admirado. Passo é esse qui sinhô tá veno: foia seca só. Agora, si sinhô qué qui burro come de nôte manda gente derrubá mandacaru. Munto bom; boi gosta munto.
O mineiro riu da estultícia do conselho, e insistiu:
— Mesmo longe não haveria alguma roça velha, encapoeirada?
— A roça qui é, ioiô? Perguntou o africano, com cara de riso. Pai Tomé veio moleque pra terra de branco, e nunca viu coisa assim. Ah! ioiô! Deus brigou com nós tudo! A roça aqui, nem longe nem perto; nem véia, nem nova. Ué!
E continuou a trabalhar.
O mineiro decidiu-se a mandar arrumar num eixo de serra, que se via a certa distância, e para abreviar foi ajudando a
Parou. Com a curiosidade de saber para que fim, aproximou-se, e depois das boas tardes, perguntou:
— Você procura água nesse duro, amigo? O sertanejo levantou a cabeça:
— Não, patrão; estou fazendo uma cova para meu filho que morreu.
Olhe ali. Era um menino que fazia gosto ver! Vivo como ele só!
O mineiro olhou e viu uma mulher sentada junto a um murundu, tendo no regaço o cadáver dum menino.
Depois de um longo suspiro, o sertanejo acrescentou em voz queixosa:
— A fome, patrão! A fome é que faz tudo isso!
— E o menino morreu de fome? Inquiriu o mineiro.
— Morreu, sim senhor! Disse o sertanejo, e acrescentou: — como muita gente tem morrido por este sertão de meu Deus! Até pai já tem matado filho pra comer! Perto daqui mesmo, dizem, eu mesmo não sei, dizem que um velho Raymundo (pode ser que sua mercê tenha dormido na casa dele), que esse velho Raimundo já matou dois.
O mineiro sentiu apertar-se-lhe o coração. Ligeiro calafrio cortou-lhe a espinha dorsal.
— Que é que está dizendo: homem?! Exclamou, sem dominar-se.
— Não sei, patrão; o povo é que diz. E parece que é assim mesmo porque ninguém sabe rumo dum que ele disse que se perdeu no mato, há uns dias.
Rápida associação de ideias fez esfriarem as mãos do mineiro. Somente agora lhe causava estranheza que o velho Raymundo tanto insistisse para trocar uma filha por um celamim de sal, em vez de o fazer por um pedaço de carne, quando por não tê-la se queixava.
Pensou em Maria, e o coração doeu-lhe deveras.
Não quis, em todo o caso, revelar o negócio do sal.
Não se confessaria ingênuo ou cúmplice involuntário de uma tal monstruosidade.
— Vender filho, continuou o sertanejo, isso é coisa que se vê todos os dias.
— Na verdade! Comentou o mineiro, baixando a cabeça, pensativo.
— Ah! Patrão de minh’alma! Exclamou o sertanejo, parando a escavação, têm se visto coisas com esta fome! Saí da terra dos meus, cidade de Caetité, e lá, e nos caminhos tenho visto! Patrão! — Bradou o retirante com amargura, — o Deus que nos protegia morreu ou mudou-se!
A enxada caiu de novo, cavando fundo, enquanto pela face do sertanejo duas lágrimas desciam vagarosamente.
Houve pequena pausa, durante a qual só se ouvia o tum, tum, abafado, da enxada na cova.
— Nós, João, não devemos agravar a Deus; antes sofrer com paciência! Disse, sufocando os soluços, a mulher, cujo rosto, oculto pelo xale, não pôde o mineiro observar.
O sertanejo não respondeu. Enterrando mais o chapéu de couro na cabeça, e cerrando os
Ricardo interrompeu o doloroso silêncio.
— E daqui para onde você vai, sôr João?
— Eu mesmo nem sei, patrão. Daqui, talvez pra beira-mar. Tenho vontade de tentar a sorte na
— Pois é bom ir. Eu pra lá vou vender um salzinho. Se for bom deveras, fico.
— Daí, pode ser que eu vá, obtemperou o João. Só tenho medo de ser um lugar, onde ainda se mata gente por vadiação.
— Não é mais assim, não. Isso foi no princípio, quando um sujeito, pra comprar uma Disponível em: www.antiguidadesdomestre.com.br.
Em todo o caso, não há como a gente andar prevenido.
Houve novo silêncio.
Caía a noite. O sertanejo tomou o cadáver do filho, envolto em trapos, e o depositou na cova com o mesmo cuidado como se o fizesse numa cama. Em obediência à superstição, Ricardo lançou na cova um
Dirigindo-se para o rancho, o mineiro pensava em Maria. Se tinha razão o povo, e dizia coisa certa, o pai desnaturado seria capaz de matá-la também.
Não era, entretanto, só o sentimento de compaixão que agora oprimia a alma generosa do mineiro. No seu entender, parecia estar estonteado por uma
Se visse de novo a sertaneja, pensava ele, perderia de todo a cabeça e casar-se-ia com ela. Como devia ser amorosa e boa! No mais, a miséria é que não a deixava parecer mais bonita.
Quando assim meditava o serrano, ouviu um dos seus camaradas, que voltava da arrumação, cantar de voz solta, na toada dolente que os sertanejos conhecem:
Lá vai a garça voando
Lá pra a banda do sertão,
Leva Teresa no bico,
Maria no coração…
Ricardo reconheceu a voz de Pingo d’Água. Este continuou:
Cravo roxo, cravo rosa,
Cravo de toda nação!
Meu benzinho de tão longe…
Ai, meu Deus, não posso, não!
E estribilhava com mais tristeza:
Ai, meu Deus, não posso, não!
O mineiro sentiu que se lhe marejavam os olhos, após ligeiro arrepio dos cabelos, e gritou de longe:
— Cala essa boca, demônio!
Pingo d’Água compreendeu que tinha ferido o patrão e retrucou, incontinente, com vivacidade:
O tronco nasce da terra,
Do tronco rebenta a rama,
Meu patrão não se incomode,
De longe também se ama!
Chegado ao rancho, Ricardo não pôde cear. Tomou apenas um Imagem retirada do site Pixabay.
Pingo d’Água, sentado num couro, à beira do fogo, ralhava na viola.
Ao longe ouviam-se rezas de velório em um rancho de retirantes.
Somente pela madrugada o mineiro adormeceu.

CRITÉRIOS DE EDIÇÃO
CRITÉRIOS GERAIS DA HIPEREDIÇÃO
Para a elaboração da hiperedição, foram adotados os critérios e princípios estabelecidos por Shillingsburg (1993) e Barreiros (2013), com os acréscimos e adaptações necessários, adequados aos objetivos específicos da pesquisa. Nessa edição, deverão constar, entre outros, os seguintes elementos:
a) A edição interpretativa do texto editado, permitindo níveis de visualização e ampliação da imagem;
b) A transcrição do texto sobre a imagem digital com opção de zoom;
c) A edição para impressão;
d) A edição com hiperlink para visualizar as correções e as variantes textuais em janelas ou tooltips;
e) A barra com o dossiê arquivístico, contendo os paratextos e informações adicionais organizadas em forma de rizoma;
f) Espaço para acessar a descrição paleográfica do texto;
g) Quadro de avisos para informar os acréscimos e correções;
h) A barra com atividades pedagógicas, contendo conteúdo para a formação leitora do literária.
Critérios adotados na edição interpretativa
Para a edição interpretativa do romance Maria Dusá, foram tomados como base o folhetim publicado no Diário de Notícias (1908-1909) e a primeira edição em livro (1910), ambos realizados em vida do autor. A preparação seguiu critérios fundamentados nas normas de Cambraia (2005), com adaptações às particularidades do texto e aos objetivos da pesquisa. Entre os principais procedimentos adotados, destacam-se:
a) Respeitar o seccionamento do texto-base em capítulos, bem como a sua paragrafação;
b) Manter a pontuação original;
c) Manter as palavras destacas em itálico;
d) Atualizar a grafia do texto de acordo com a ortografia vigente, em vigor no Brasil desde 2009, conforme o Decreto nº 6.584/2008. Ressalva-se, entretanto, a manutenção das grafias que reproduzem a modalidade oral da língua, particularmente nos trechos correspondentes à fala das personagens, que serão preservadas tal como aparecem no texto original;
e) Acentuar conforme as normas vigentes, salvo quando se tratar de registros da
oralidade;
f) Antropônimos não serão uniformizados de acordo com a ortografia atual, em virtude de existirem diversas grafias para o mesmo nome. Sendo assim, serão mantidos como no texto de base;
g) Inserir as notas próprias do texto-base (Chardron, 1910) e do texto da Série Bom Livro/Edição Didática (Ática, 1978);
h) Inserir notas explicativas e críticas do filólogo ao pé da página.

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