MARIA DUSÁ

Maria Dusá

(GARIMPEIROS)

Romance de costumes sertanejos e chapadistas

Índice

III

Poucos, da atual geração de baianos, desconhecem, pelo menos de tradição, o que foi, para o povo sertanejo, o ano de 1860. De quantas secas periódicas têm devastado os sertões brasileiros, raras legaram tão horrível memória, como a geralmente conhecida por seca de 60, aliás 59, de que resultou a crise alimentícia denominada fome de 60.

Na crença dos adoradores de um Deus que pune e premeia, nunca se revelou mais evidente e punitivo o seu braço irado e inexorável.

Nesse ano de tristíssimas recordações a zona ubertosa Zona ubertosa: expressão usada para indicar uma região de terra fértil e produtiva, com grande capacidade para a agricultura e o cultivo de plantas.
do interior da província da Bahia transformou-se em terra sáfara Terra sáfara: expressão que se refere a uma terra infértil, geralmente pedregosa, seca e deserta, com pouca ou nenhuma capacidade para o cultivo.
, imprestável; de nutriz fecunda e dadivosa, que era, mudou-se em madrasta irritadiça e ilacrimável; de liberal e opulenta, em mendicante e miseranda.

Em grandes extensões de terreno não se vislumbrava sinal de clorofila senão no Icó, a planta que resiste a todas as secas, e nas diversas espécies de cactos, entre as quais sobressaíam o mandacaru, a palmatória e o xique-xique Neste trecho, a narrativa apresenta espécies de plantas típicas do semiárido nordestino, adaptadas para armazenar água e resistir a longos períodos de estiagem. Essas espécies integram o bioma caatinga e desempenham um papel essencial na sobrevivência de pessoas e animais durante as secas prolongadas, como as que marcaram a Bahia e o sertão nordestino ao longo do século XIX.
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formando este sempre e em grande cópia os grandes e bizarros candelabros de Humboldt Candelabros de Humboldt : também conhecido como Candelabro de Paracas, recebe esse nome em homenagem ao naturalista e geógrafo Alexander von Humboldt. Trata-se de um geoglifo (desenho de grandes proporções feito no solo), com formato semelhante a um candelabro, localizado na Península de Paracas, próxima às Ilhas Ballestas, no litoral do Peru.
. [3] No trecho apresentado, observa-se um certo distanciamento do narrador em relação à região retratada, evidenciado pela mistura entre elementos típicos da caatinga com os Candelabros de Humboldt, um símbolo estranho à cultura nordestina. Essa combinação sugere um olhar externo ou uma visão exotizante, que transforma o sertão baiano em um cenário curioso e fantasioso, distante da realidade local.

A catinga (mato esbranquiçado) justificava de modo perfeito a denominação tupi, dada a essa vegetação enfezada.

Para cúmulo da penúria vegetal e animal, os incêndios multiplicavam-se nos campos e carrascos. Propósito ou descuido de caminhante ou caçador, o fogo fortalecia a ação destruidora do sol.

No céu, nenhum sinal promissor de chuva, e já ia em meio o ano.

Como sucede nos anos secos, nuvens tênues e esgarçadas passavam alto, muito alto, em diversas direções, como se evitassem baixar sobre a terra maldita.

Já não tinha encantos o alvorecer nas terras sertanejas. Um silêncio pesado substituíra a ruidosa alegria do passaredo farto, a saltitar em meio da verdura primaveril doutros tempos.

Os arrebóis vespertinos aparentavam apenas a beleza trágica de quotidianos incêndios em vastas e longínquas regiões do ocidente.

De resto, o céu em fogo dizia bem com o alvejar das ossadas dispersas pelos campos desolados.

As fazendas mais abastadas estavam quase desertas. Dificilmente se ouvia um mugido, mesmo tristonho e cavernoso. Mais de um fazendeiro rico batera Batera: pretérito mais-que-perfeito do verbo “bater”. A expressão “bater as porteiras”, especialmente no contexto sertanejo ou rural, é empregada no sentido de fechar as porteiras, encerrar as atividades, abandonar o curral ou desistir da criação.
já as porteiras dos currais mal situados.

Pequenos lavradores e criadores, transformados em jornaleiros de pataca e de doze vinténs Jornaleiros de pataca e de doze vinténs: expressão que, no texto, se refere a trabalhadores assalariados mal remunerados.
, emigravam sem destino, isto é, caminhavam à toa, por falta de trabalho e de alimento.

Nas estradas, de espaço a espaço, encontravam-se quadros vivos da mais completa consternação. Aqui, um velho, cercado de filhos e netos famintos, num cirro interminável de durar dias e dias; ali, um desventurado pedindo pelo amor de Deus um punhado de farinha para que o filho pudesse morrer; adiante a figura esquelética doutra mater dolosa Mater dolorosa: expressão latina que significa “mãe dolorosa”. Refere-se à Virgem Maria em sua representação de sofrimento, especialmente durante a Paixão de Cristo, simbolizando a dor de uma mãe ao ver seu filho sofrer.
, na última agonia, deixando que o filhinho lhe sugasse a derradeira gota de leite sanguinoso; além, orlando a estrada, arranchamentos provisórios, retirantes Retirantes: pessoas que abandonam a sua terra fugindo da seca e da miséria em busca de uma região que lhe dê melhores condições de vida e trabalho.
famintos, movendo-se lentamente, em busca d’água ou de raízes, extremamente magros, cheios de escaras, de doenças, de achaques, ou aniquilados de anemia profunda, e dentre os quais partiam gritos que aterravam, gemidos que cortavam o coração, e, de envolta com esses, imprecações dos desesperados, pragas dos cínicos, gargalhadas dos desalmados, choro de
crianças, tudo isso lembrando alguma coisa daquele choro e ranger de dentes do Juízo Final.

Viajando no coice da tropa Coice da tropa: expressão regional de sentido figurado que indica a ação de seguir atrás da tropa de animais, especialmente bois ou cavalos.
, no seu ruão, passo a passo, Ricardo assistia, cada vez mais desanimado, a essa espécie de lúgubre procissão da fome, a desfilar- se vagarosa pela estrada afora.

Tendo arribado do pouso do Raymundo Alves, o mineiro mandou derrubar no rodeador Rodeador: regionalismo nordestino que se refere a um espaço aberto nos campos, usado pelos vaqueiros para reunir, organizar ou inspecionar o gado, especialmente durante o manejo ou a contagem dos animais.
, distante três léguas, e onde ainda existia um olho-d’água Olho d’água: termo usado para designar uma nascente, lugar onde a água brota naturalmente do solo. Isso acontece quando o lençol freático (camada subterrânea de água) chega próximo à superfície e a água aparece, formando uma nascente.
, que nunca secou, porque nunca lhe fora destruída a vegetação protetora.

Junto à casa de um velho africano, derrubaram-se as cargas.

Feito o rancho, isto é, arrumadas em dupla fileira as bruacas e surrões de sal, sobrepostas as cangalhas, — peitoral para a frente, a fim de se não atrasar a viagem, — aceso o fogo e armada a trempe de três agulhas de arrocho Trempe de três de agulhas de arrocho: tripé rústico feito com três ferros finos (as “agulhas”), amarrados ou presos no topo, formando uma estrutura em forma de pirâmide. Esse tripé é usado para sustentar uma panela sobre o fogo, permitindo o preparo de alimentos. É um utensílio típico, comumente utilizados por sertanejos e tropeiros em acampamentos.
, enfeixadas na parte superior, — os camaradas, menos o cuca, perguntaram ao patrão onde deviam arrumar.

O sol estava a cravar-se.

Ricardo Brandão dirigiu-se ao velho africano, que tecia esteiras de pindoba Pindoba: tipo de palmeira, em especial do gênero Attalea, muito comum no nordeste do Brasil, de onde se retiram folhas para cobrir casas, fazer esteiras ou artesanato.
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, sentado à porta, e depois de saudá-lo, indagou:

— Se não havia pasto, perto ou longe.

Passo qui é, sinhô?! Exclamou o preto admirado. Passo é esse qui sinhô tá veno: foia seca só. Agora, si sinhô qué qui burro come de nôte manda gente derrubá mandacaru. Munto bom; boi gosta munto.

O mineiro riu da estultícia do conselho, e insistiu:

— Mesmo longe não haveria alguma roça velha, encapoeirada?

— A roça qui é, ioiô? Perguntou o africano, com cara de riso. Pai Tomé veio moleque pra terra de branco, e nunca viu coisa assim. Ah! ioiô! Deus brigou com nós tudo! A roça aqui, nem longe nem perto; nem véia, nem nova. Ué!

E continuou a trabalhar.

O mineiro decidiu-se a mandar arrumar num eixo de serra, que se via a certa distância, e para abreviar foi ajudando a tanger Tanger: no contexto rural, significa conduzir, guiar ou afastar um animal, geralmente com gestos, sons ou instrumentos.
os animais. A uns duzentos passos estava um homem cavando a terra.

Parou. Com a curiosidade de saber para que fim, aproximou-se, e depois das boas tardes, perguntou:

— Você procura água nesse duro, amigo? O sertanejo levantou a cabeça:

— Não, patrão; estou fazendo uma cova para meu filho que morreu.

Olhe ali. Era um menino que fazia gosto ver! Vivo como ele só!

O mineiro olhou e viu uma mulher sentada junto a um murundu, tendo no regaço o cadáver dum menino.

Depois de um longo suspiro, o sertanejo acrescentou em voz queixosa:

— A fome, patrão! A fome é que faz tudo isso!

— E o menino morreu de fome? Inquiriu o mineiro.

— Morreu, sim senhor! Disse o sertanejo, e acrescentou: — como muita gente tem morrido por este sertão de meu Deus! Até pai já tem matado filho pra comer! Perto daqui mesmo, dizem, eu mesmo não sei, dizem que um velho Raymundo (pode ser que sua mercê tenha dormido na casa dele), que esse velho Raimundo já matou dois.

O mineiro sentiu apertar-se-lhe o coração. Ligeiro calafrio cortou-lhe a espinha dorsal.

— Que é que está dizendo: homem?! Exclamou, sem dominar-se.

— Não sei, patrão; o povo é que diz. E parece que é assim mesmo porque ninguém sabe rumo dum que ele disse que se perdeu no mato, há uns dias.

Rápida associação de ideias fez esfriarem as mãos do mineiro. Somente agora lhe causava estranheza que o velho Raymundo tanto insistisse para trocar uma filha por um celamim de sal, em vez de o fazer por um pedaço de carne, quando por não tê-la se queixava.

Pensou em Maria, e o coração doeu-lhe deveras.

Não quis, em todo o caso, revelar o negócio do sal.

Não se confessaria ingênuo ou cúmplice involuntário de uma tal monstruosidade.

— Vender filho, continuou o sertanejo, isso é coisa que se vê todos os dias.

— Na verdade! Comentou o mineiro, baixando a cabeça, pensativo.

— Ah! Patrão de minh’alma! Exclamou o sertanejo, parando a escavação, têm se visto coisas com esta fome! Saí da terra dos meus, cidade de Caetité, e lá, e nos caminhos tenho visto! Patrão! — Bradou o retirante com amargura, — o Deus que nos protegia morreu ou mudou-se!

A enxada caiu de novo, cavando fundo, enquanto pela face do sertanejo duas lágrimas desciam vagarosamente.

Houve pequena pausa, durante a qual só se ouvia o tum, tum, abafado, da enxada na cova.

— Nós, João, não devemos agravar a Deus; antes sofrer com paciência! Disse, sufocando os soluços, a mulher, cujo rosto, oculto pelo xale, não pôde o mineiro observar.

O sertanejo não respondeu. Enterrando mais o chapéu de couro na cabeça, e cerrando os malares Malares: termo que se refere aos ossos das maçãs do rosto, também chamados de ossos zigomáticos. No contexto apresentado, a expressão “cerrar os malares” indica um gesto em que a pessoa fecha o semblante e contrai os músculos do rosto, geralmente como forma de conter uma emoção intensa, como raiva, revolta ou indignação.
, como para estrangular qualquer imprecação Imprecação: maldição, praga, xingamento.
inconveniente, continuou a trabalhar.

Ricardo interrompeu o doloroso silêncio.

— E daqui para onde você vai, sôr João?

— Eu mesmo nem sei, patrão. Daqui, talvez pra beira-mar. Tenho vontade de tentar a sorte na Chapada Nova Chapada Nova: região da Chapada Diamantina que, assim como a Chapada Velha, foi marcada pela exploração de diamantes. A Chapada Nova corresponde às áreas de garimpo e povoamento mais recentes, em contraste com as ocupações mais antigas da Chapada Velha.
; mais a mulher está repunando Repunando: do verbo repunar, a expressão popular e regional significa mostrar resistência, repulsa ou aversão a algo.
.

— Pois é bom ir. Eu pra lá vou vender um salzinho. Se for bom deveras, fico.

— Daí, pode ser que eu vá, obtemperou o João. Só tenho medo de ser um lugar, onde ainda se mata gente por vadiação.

— Não é mais assim, não. Isso foi no princípio, quando um sujeito, pra comprar uma lazarina Lazarina: espingarda de pequeno calibre, de um só cano, que no passado era muito utilizada pelos sertanejos, especialmente na caça de aves.
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, alvejava nalgum pobre que passava.

Em todo o caso, não há como a gente andar prevenido.

Houve novo silêncio.

Caía a noite. O sertanejo tomou o cadáver do filho, envolto em trapos, e o depositou na cova com o mesmo cuidado como se o fizesse numa cama. Em obediência à superstição, Ricardo lançou na cova um pugilo Pugilo: pequena porção de algo que cabe entre os dedos, como um punhado ou uma pitada.
de terra, e com um até outra hora, retirou-se depressa para que a inditosa mãe pudesse chorar e lastimar- se à vontade.

Dirigindo-se para o rancho, o mineiro pensava em Maria. Se tinha razão o povo, e dizia coisa certa, o pai desnaturado seria capaz de matá-la também.

Não era, entretanto, só o sentimento de compaixão que agora oprimia a alma generosa do mineiro. No seu entender, parecia estar estonteado por uma coisa feita Coisa feita: feitiço, maldição lançada por alguém.
. O lindo semblante da sertaneja e o seu olhar de uma doçura infinita exaltavam a imaginação do serrano com tal intensidade que o obrigavam a evocar a lembrança do olhar da Nossa Senhora do Patrocínio da Serra Nova Nossa Senhora do Patrocínio da Serra Nova: Nossa Senhora do Patrocínio é um título da Virgem Maria, muito venerada pelos católicos em Minas Gerais. Há diversas localidades que homenageiam esse nome, inclusive uma comunidade real chamada Serra Nova, situada no município de Rio Pardo de Minas. No romance, o personagem Ricardo Brandão é natural de uma “Serra Nova”, possivelmente uma referência a esse local real.
.

Se visse de novo a sertaneja, pensava ele, perderia de todo a cabeça e casar-se-ia com ela. Como devia ser amorosa e boa! No mais, a miséria é que não a deixava parecer mais bonita.

Quando assim meditava o serrano, ouviu um dos seus camaradas, que voltava da arrumação, cantar de voz solta, na toada dolente que os sertanejos conhecem:

Lá vai a garça voando

Lá pra a banda do sertão,

Leva Teresa no bico,

Maria no coração…

Ricardo reconheceu a voz de Pingo d’Água. Este continuou:

Cravo roxo, cravo rosa,

Cravo de toda nação!

Meu benzinho de tão longe…

Ai, meu Deus, não posso, não!

E estribilhava com mais tristeza:

Ai, meu Deus, não posso, não!

O mineiro sentiu que se lhe marejavam os olhos, após ligeiro arrepio dos cabelos, e gritou de longe:

— Cala essa boca, demônio!

Pingo d’Água compreendeu que tinha ferido o patrão e retrucou, incontinente, com vivacidade:

O tronco nasce da terra,

Do tronco rebenta a rama,

Meu patrão não se incomode,

De longe também se ama!

Chegado ao rancho, Ricardo não pôde cear. Tomou apenas um cuitezinho Cuitezinho: expressão utilizada em regiões do interior do Brasil para se referir ao ato de tomar um pequeno café, geralmente servido em uma cuia ou recipiente semelhante, chamado de cuité. A expressão carrega um tom afetivo e costuma acompanhar momentos de conversa e hospitalidade.
de café, acendeu um cigarro, e estendeu-se na rede. Apesar de toda a energia empregada para calcular os negócios, e pensar nas riquezas da Chapada Chapada: o autor faz referência à Chapada Diamantina, uma região constituída de montanhas, chapadas e planaltos da Serra do Espinhaço, localizada na região central do estado da Bahia.
Imagem retirada do site Pixabay.
, só uma ideia sobrenadava, a obsediar-lhe a mente. Maria surgia-lhe do fundo da memória, cada vez mais formosa.

Pingo d’Água, sentado num couro, à beira do fogo, ralhava na viola.

Ao longe ouviam-se rezas de velório em um rancho de retirantes.

Somente pela madrugada o mineiro adormeceu.


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