Maria Dusá
(GARIMPEIROS)
Romance de costumes sertanejos e chapadistas
V
Do pouso do Angico, Ricardo continuou a viagem sem tropeços. Em poucos dias atravessou o
Em consequência da viagem, estava quase apagada no espírito do mineiro a lembrança da sertaneja. A sua chegada ao Mucugê obliterou ainda mais essa lembrança.
Não obstante ser filho da província de Minas e, além disso, bastante corrido, habituado, portanto, a lidar em meio de grandes cidades sertanejas, em todo o caso, o burburinho febril do comércio do Mucugê, d’então, tornou-o, na gíria dos tropeiros,
É preciso, em verdade, petulância e presença de espírito, para um homem qualquer enfrentar, de chofre, com calma e sem desaprumar-se, o grande movimento de uma lavra, recentemente descoberta, onde se aglomere uma população de dezenas de milhares de indivíduos, gente de todos os climas, de todas as raças, de todas as condições, e costumes diversos, num vaivém contínuo, numa
Ricardo mandou derrubar na intendência do capitão Joaquim Manuel, o protótipo da honradez, como homem e negociante. O mineiro ouviu, durante a viagem, falar muito nesse homem como homem bom do lugar, no dizer singelo dos sertanejos, que é o mesmo das antigas ordenações do Reino, e, por precaução, estando em terra alheia, dirigiu-se ao capitão Joaquim Manuel.
Precisava de quem o protegesse desinteressadamente, em qualquer emergência, e ninguém se lhe afigurou melhor.
Esse negociante modesto (liberal e monarquista que, nessa época, nem poderia sonhar ter um dia, trinta e três anos depois, um de seus filhos, como governador de um estado republicano)
— Donde vinha? Que trazia de negócio? Inquiriu.
— Era da Serra Nova, Minas, mas vinha de baixo pelo Maracá, donde pretendeu seguir para a casa; mas voltou para a Chapada Nova, porque soube que o sal estava dando, bem como o toicinho. Por isso a tropinha estava tampada de sal e toicinho.
Respondeu-lhe também o bom negociante:
— Que aproveitasse a quadra, realmente boa. Não podia ser melhor. Ele não comprava, porque não tinha mais onde depositar; porém, comprador não faltaria.
Pedindo sua proteção, o mineiro justificou-se, declarando que não tinha conhecimento algum no comércio.
O paciente negociante deu-lhe informações de pessoas e chegou até a indicar-lhe um alugador de
Deu-lhe conselhos para não se afastar do carregamento e do rancho nem se meter em badernas, se acaso gostava disso, porque poderia se arrepender.
Ricardo asseverou sisudamente que não era de badernas, nem na sua própria terra, e, despedindo-se, voltou-se ao rancho.
Nesse mesmo dia, em poucas partidas, dinheiro à vista, vendeu o carregamento, com grande lucro.
Por segurança, logo ao anoitecer deu a guardar, contado e amarrado em bolo, todo o dinheiro ao capitão Joaquim Manuel, e, conforme o seu costume, às 8 horas estava deitado em sua rede, armada a um canto do casarão de meias paredes, denominado intendência, onde estavam hospedados outros
Não dormiu logo, porque entrou a fazer cálculos para a execução do plano traçado, isto é, vender parte da tropa e atirar-se ao garimpo.
Em tais cálculos adormeceu, imitando todos os companheiros de rancharia, no ressonar alto e compassado.
Alta noite, uma tropilha de desocupados
Aproximaram-se alguns, pé ante pé, da em que estava Ricardo; porém o mineiro não se deixou surpreender. Como todos os viajantes de profissão, em geral, tinha o sono leve. Assim, quando o mais avançado quis puxar um couro do lote de sua tropa, ele disse pausadamente:
— Deixe disso, moço. O senhor não sabe com quem brinca. É melhor ir-se embora!
— Eu puxo couro de outros, quanto mais de você, respondeu o desconhecido,
— Terra sem governo! Solta o couro, já lhe disse! Retrucou Ricardo.
Os camaradas acordaram, e procuravam se munir de agulhas de arrocho, às apalpadelas, descompondo os vadios.
O vadio, supondo que esse, como outros bruaqueiros, se limitasse a persegui-lo, atirando agulhas, cobriu a cabeça e as costas com o couro aberto, e correu, arrastando as garras do couro pelas calçadas.
— Espera, diabo, traste! Gritaram a um tempo bruaqueiros e tropeiros, atirando, no rumo,
O sangue, em saída, refluíra ao coração do mineiro, que, como possuído de loucura instantânea, apanhou a pistola de dois canos, e correu no encalço do desconhecido, cujos companheiros corriam adiante, em fileira, fiados no anteparo do couro.
— Espera, desgraçado! Gritou Ricardo, que, não podendo alcançá-lo, fez fogo.
Ouviu-se um grito e o baque do couro. Os outros vadios fugiram covardemente, deixando o companheiro, de borco, na calçada.
Ricardo voltou, caminhando, e, ainda descalço, sentou-se na rede, afrontado, ardendo em cólera.
Algumas portas se abriram, apareceram luzes, ao longe.
Os camaradas, penalizados, rodearam o mineiro, exclamando, comentando:
— Ora, patrão, vosmecê se botar a perder com uma coisa ruim!
— Vosmecê matou o homem deveras!
Diante dessas vozes, Ricardo levantou-se sem saber que devia fazer. Voltava-lhe a reflexão. Tirou-o do estado de perplexidade o conhecido trilo de apito da polícia, e o estrépito de gente que corria dos lados da cadeia velha.
Falou-lhe então, alto, o instinto de liberdade e conservação. Agarrou o casaco de algodão, tingido de lama, enrolou-o na capanga de couro, e, empunhando punhal e pistola, correu por um beco próximo, que dava para o rio Mucugê.
Quando a patrulha chegou, já o mineiro tinha desaparecido na escuridão.
Todos se apressaram em dizer que o criminoso já não estava ali; tinha fugido, ninguém sabia para onde.
O comandante da patrulha agastou-se com tanta inocência:
— Alguém haveria de saber, ou então prenderia todos.
Para aquietar a fúria dos soldados, um, menos discreto, dos tropeiros disse:
— Ora! fugiu por esse beco aí, e se bem andou, já atravessou o rio.
— Olha os sapatos dele ali, acrescentou outro, apontando, à luz do fogo do caldeirão da feijoada, os sapatos do mineiro debaixo da rede.
Assim orientados, os guardas (como então eram chamados) atufaram-se na escuridão do beco, em carreira até à Várzea; porém nada viram nem ouviram. Apenas ninhadas de porcos espantados corriam, soprando e roncando, pela várzea afora. A um soldado pareceu-lhe lobrigar um vulto branco, ao longe, correndo. Por desencargo de consciência, descarregou a pistola que levava em companhia da baioneta. Não se viu mais nada. Após o estampido, que ecoou de quebrada em quebrada, e os estalos do ricochete da bala nas pedras, tudo ficou em silêncio, em relação a vozes e movimentos de gente.
Somente o Mucugê escachoava ruidoso por entre os rochedos e penedias escuras de suas margens e leito.
A patrulha entrou em consultas recíprocas e resolveu-se a voltar à intendência.
Os camaradas de Ricardo não arredaram pé dos lotes.
Ao chegar à rancharia, o comandante da patrulha inquiriu se não tinha companheiros ali o criminoso:
— Que tinha camaradas, foi a resposta de Pingo d’Água, e indicou os quatro, incluindo-se.
— Pois me acompanhem, disse o
— Pra cadeia? Perguntaram a um tempo os camaradas.
— Sim, respondeu um guarda, enquanto o furriel coçava a cabeça, inclinando a barretina sobre os olhos.
— Uai! Exclamou Benedito, como é que o patrão faz um dilito e o camarada vai preso?
— Não. Isso não está direito, não; acrescentou Joaquim.
— E que tem isso? Perguntou o comandante.
— Tem, que eu não vou por bem, nem por mal, porque não fiz dilito nenhum. E comecem com muita conversa, eu grito meu amo, senhor coronel Rocha, e está tudo acabado. O sobrado dele é ali perto, disse Pingo d’Água.
Diante desse nome e da ameaça, o furriel coçou de novo a cabeça e os guardas emudeceram.
— Mas é preciso sempre ir à casa do Sr. subdelegado.
— Está bom, isso a gente vai amanhã, retrucou Pingo d’Água; hoje já é tarde, não tem quem tome conta do rancho. E depois o vadio não teve nada. Um carocinho de chumbo na pele.
O furriel concordou e retirou-se, depois de tomar o nome do patrão e dos camaradas, em direção da casa duma velha Sinhanna, onde soube estar o ferido, um rapazola imberbe, órfão de pai e mãe.
Aí verificou o furriel que realmente não devia incomodar o subdelegado. Apenas quatro
Remédios caseiros foram aplicados e o rapazinho fumava o seu cigarro tranquilamente.
Em todo o caso, no dia seguinte foram ouvidos os camaradas e mais tropeiros, formando-se o corpo de delito. Por mais que as testemunhas do inquérito inocentassem o delinquente, este, na melhor hipótese, teria que pagar a imprudência do seu impulso, com quatro anos de prisão com trabalho, ou mais oito meses de prisão simples, porque ficou bem classificada a tentativa de homicídio.
Entretanto não houve mais novas do mineiro. Essa falta de notícias incomodava ao capitão Joaquim Manuel, por estar de posse do dinheiro de Ricardo, e exposto à probabilidade de comparecer em juízo, o que nada tinha de agradável.
Providenciou, portanto, em segredo, para que fosse encontrado o mineiro, vivo ou morto.
Quanto aos camaradas, mandou chamá-los e aconselhou-os que não abandonassem o rancho.
Somente não pôde dar um jeito em Pingo d’Água, que, à noite, andava já de viola ao peito, cantando em

CRITÉRIOS DE EDIÇÃO
CRITÉRIOS GERAIS DA HIPEREDIÇÃO
Para a elaboração da hiperedição, foram adotados os critérios e princípios estabelecidos por Shillingsburg (1993) e Barreiros (2013), com os acréscimos e adaptações necessários, adequados aos objetivos específicos da pesquisa. Nessa edição, deverão constar, entre outros, os seguintes elementos:
a) A edição interpretativa do texto editado, permitindo níveis de visualização e ampliação da imagem;
b) A transcrição do texto sobre a imagem digital com opção de zoom;
c) A edição para impressão;
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f) Espaço para acessar a descrição paleográfica do texto;
g) Quadro de avisos para informar os acréscimos e correções;
h) A barra com atividades pedagógicas, contendo conteúdo para a formação leitora do literária.
Critérios adotados na edição interpretativa
Para a edição interpretativa do romance Maria Dusá, foram tomados como base o folhetim publicado no Diário de Notícias (1908-1909) e a primeira edição em livro (1910), ambos realizados em vida do autor. A preparação seguiu critérios fundamentados nas normas de Cambraia (2005), com adaptações às particularidades do texto e aos objetivos da pesquisa. Entre os principais procedimentos adotados, destacam-se:
a) Respeitar o seccionamento do texto-base em capítulos, bem como a sua paragrafação;
b) Manter a pontuação original;
c) Manter as palavras destacas em itálico;
d) Atualizar a grafia do texto de acordo com a ortografia vigente, em vigor no Brasil desde 2009, conforme o Decreto nº 6.584/2008. Ressalva-se, entretanto, a manutenção das grafias que reproduzem a modalidade oral da língua, particularmente nos trechos correspondentes à fala das personagens, que serão preservadas tal como aparecem no texto original;
e) Acentuar conforme as normas vigentes, salvo quando se tratar de registros da
oralidade;
f) Antropônimos não serão uniformizados de acordo com a ortografia atual, em virtude de existirem diversas grafias para o mesmo nome. Sendo assim, serão mantidos como no texto de base;
g) Inserir as notas próprias do texto-base (Chardron, 1910) e do texto da Série Bom Livro/Edição Didática (Ática, 1978);
h) Inserir notas explicativas e críticas do filólogo ao pé da página.

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