MARIA DUSÁ

Maria Dusá

(GARIMPEIROS)

Romance de costumes sertanejos e chapadistas

Índice

V

Do pouso do Angico, Ricardo continuou a viagem sem tropeços. Em poucos dias atravessou o gerais Gerais: campos extensos, desabitados e com vegetação escassa.
do Tanquinho Tanquinho: na região da Chapada Diamantina, no estado da Bahia, existe um distrito chamado Tanquinho. Ele faz parte do município de Lençóis e está localizado a aproximadamente 126 quilômetros da cidade de Mucugê, outra importante localidade da Chapada em que o romance é ambientado.
; passou pelo Comércio de Fora Comércio de Fora: antigo ponto de passagem e localidade próxima a Mucugê, que servia como parada comercial e de apoio para viajantes e garimpeiros.
, e entrou em Mucugê Mucugê: cidade histórica da Chapada Diamantina, localizada a cerca de 448 km de Salvador, a capital do estado da Bahia. No século XIX, destacou-se como um dos primeiros locais da região onde se encontraram diamantes, atraindo garimpeiros e comerciantes e marcando a história do ciclo do garimpo de diamantes na Bahia.
, aliás vila de Santa Isabel, desde 1847, porém somente conhecida então por aquele nome.

Em consequência da viagem, estava quase apagada no espírito do mineiro a lembrança da sertaneja. A sua chegada ao Mucugê obliterou ainda mais essa lembrança.

Não obstante ser filho da província de Minas e, além disso, bastante corrido, habituado, portanto, a lidar em meio de grandes cidades sertanejas, em todo o caso, o burburinho febril do comércio do Mucugê, d’então, tornou-o, na gíria dos tropeiros, zaranza Zaranza: atordoado.
e apoucado Apoucado: acanhado, tímido.
.

É preciso, em verdade, petulância e presença de espírito, para um homem qualquer enfrentar, de chofre, com calma e sem desaprumar-se, o grande movimento de uma lavra, recentemente descoberta, onde se aglomere uma população de dezenas de milhares de indivíduos, gente de todos os climas, de todas as raças, de todas as condições, e costumes diversos, num vaivém contínuo, numa azáfama Azáfama: movimento intenso e contínuo.
e agitação atordoadoras, de vasto acampamento de guerra, e que acobarda os tímidos, desafiando a gana dos audazes. É aí que a luta pela existência se acentua, por vezes, de um modo acerbo e apressado, evidenciando-se o princípio egoísta, segundo o qual, sejam quais forem as condições étnicas e mesológicas, o mundo é dos que rugem e não dos que balam; é dos leões e não das ovelhas; aí, como na guerra, aqueles que esmorecem são cruamente calcados pelos próprios amigos, por todos os que se arrojam no campo da luta; nem há meio termo: aí é morrer ou vencer. Nesses lugares, e em princípio, enquanto não se uniformizam os costumes, pela força da autoridade pública ou pela preponderância dos indivíduos melhores e mais fortes, o que só acontece com o decorrer de muitos anos, a própria Caridade, entre cristãos, tem o aspecto selvagem e grosseiro, do tiro de Misericórdia das execuções militares de povos cultos.

Ricardo mandou derrubar na intendência do capitão Joaquim Manuel, o protótipo da honradez, como homem e negociante. O mineiro ouviu, durante a viagem, falar muito nesse homem como homem bom do lugar, no dizer singelo dos sertanejos, que é o mesmo das antigas ordenações do Reino, e, por precaução, estando em terra alheia, dirigiu-se ao capitão Joaquim Manuel.

Precisava de quem o protegesse desinteressadamente, em qualquer emergência, e ninguém se lhe afigurou melhor.

Esse negociante modesto (liberal e monarquista que, nessa época, nem poderia sonhar ter um dia, trinta e três anos depois, um de seus filhos, como governador de um estado republicano) [4] O Partido Liberal defendia a monarquia federativa, a abolição do poder moderador e a eleição de senadores. Em 1870, a sua ala exaltada fundou o Clube Radical, que daria origem ao Partido Republicano, contrário, evidentemente, à monarquia, e defensor dos interesses da classe média em ascensão.
; recebeu o mineiro, ao balcão mesmo, com o seu discreto e afável sorriso:

— Donde vinha? Que trazia de negócio? Inquiriu.

— Era da Serra Nova, Minas, mas vinha de baixo pelo Maracá, donde pretendeu seguir para a casa; mas voltou para a Chapada Nova, porque soube que o sal estava dando, bem como o toicinho. Por isso a tropinha estava tampada de sal e toicinho.

Respondeu-lhe também o bom negociante:

— Que aproveitasse a quadra, realmente boa. Não podia ser melhor. Ele não comprava, porque não tinha mais onde depositar; porém, comprador não faltaria.

Pedindo sua proteção, o mineiro justificou-se, declarando que não tinha conhecimento algum no comércio.

O paciente negociante deu-lhe informações de pessoas e chegou até a indicar-lhe um alugador de manga Manga: no contexto apresentado, o termo manga, usado no Nordeste e em outras regiões do Brasil, refere-se a um local cercado, destinado para o pasto do gado. É uma área de vegetação fechada ou cercada, onde os animais são reunidos temporariamente.
, de confiança, para a tropa.

Deu-lhe conselhos para não se afastar do carregamento e do rancho nem se meter em badernas, se acaso gostava disso, porque poderia se arrepender.

Ricardo asseverou sisudamente que não era de badernas, nem na sua própria terra, e, despedindo-se, voltou-se ao rancho.

Nesse mesmo dia, em poucas partidas, dinheiro à vista, vendeu o carregamento, com grande lucro.

Por segurança, logo ao anoitecer deu a guardar, contado e amarrado em bolo, todo o dinheiro ao capitão Joaquim Manuel, e, conforme o seu costume, às 8 horas estava deitado em sua rede, armada a um canto do casarão de meias paredes, denominado intendência, onde estavam hospedados outros bruaqueiros Bruaqueiros: termo utilizado na Bahia para denominar garimpeiros inexperientes; condutores de tropas de animais.
.

Não dormiu logo, porque entrou a fazer cálculos para a execução do plano traçado, isto é, vender parte da tropa e atirar-se ao garimpo.

Em tais cálculos adormeceu, imitando todos os companheiros de rancharia, no ressonar alto e compassado.

Alta noite, uma tropilha de desocupados noctívagos Noctívagos: refere-se a pessoas ou seres que têm hábitos noturnos ou que são mais ativos durante a noite.
(denominados vadios, e que constituem a escória de todas as populações) dividiu-se em grupos, e foram estes, como de costume, passear pelas intendências, acordando os bruaqueiros, arrastando couros, furtando por brincadeira, expandindo, enfim, as sensaborias do espírito baixo Sensaborias do espírito baixo: ações e ideias sem importância, maldosas ou medíocres, próprias de pessoas de espírito mesquinho e desprezível.
, acanhado e acalcanhado Acalcanhado: alguém preso a coisas insignificantes, de pensamento e comportamento desprezíveis, com atitudes de pouco valor moral ou intelectual.
.

Aproximaram-se alguns, pé ante pé, da em que estava Ricardo; porém o mineiro não se deixou surpreender. Como todos os viajantes de profissão, em geral, tinha o sono leve. Assim, quando o mais avançado quis puxar um couro do lote de sua tropa, ele disse pausadamente:

— Deixe disso, moço. O senhor não sabe com quem brinca. É melhor ir-se embora!

— Eu puxo couro de outros, quanto mais de você, respondeu o desconhecido, peguilhando Peguilhando: provocando, promovendo disputa.
, e puxando o couro, entre gargalhadas mal reprimidas dos companheiros de vadiação.

— Terra sem governo! Solta o couro, já lhe disse! Retrucou Ricardo.

Os camaradas acordaram, e procuravam se munir de agulhas de arrocho, às apalpadelas, descompondo os vadios.

O vadio, supondo que esse, como outros bruaqueiros, se limitasse a persegui-lo, atirando agulhas, cobriu a cabeça e as costas com o couro aberto, e correu, arrastando as garras do couro pelas calçadas.

— Espera, diabo, traste! Gritaram a um tempo bruaqueiros e tropeiros, atirando, no rumo, pilungas e agulhas Pilungas e agulhas: minérios satélites do diamante. (N. E.) (Série Bom Livro, 1978, p.26).
.

O sangue, em saída, refluíra ao coração do mineiro, que, como possuído de loucura instantânea, apanhou a pistola de dois canos, e correu no encalço do desconhecido, cujos companheiros corriam adiante, em fileira, fiados no anteparo do couro.

— Espera, desgraçado! Gritou Ricardo, que, não podendo alcançá-lo, fez
fogo.

Ouviu-se um grito e o baque do couro. Os outros vadios fugiram covardemente, deixando o companheiro, de borco, na calçada.

Ricardo voltou, caminhando, e, ainda descalço, sentou-se na rede, afrontado, ardendo em cólera.

Algumas portas se abriram, apareceram luzes, ao longe.

Os camaradas, penalizados, rodearam o mineiro, exclamando, comentando:

— Ora, patrão, vosmecê se botar a perder com uma coisa ruim!

Vosmecê matou o homem deveras!

Diante dessas vozes, Ricardo levantou-se sem saber que devia fazer. Voltava-lhe a reflexão. Tirou-o do estado de perplexidade o conhecido trilo de apito da polícia, e o estrépito de gente que corria dos lados da cadeia velha.

Falou-lhe então, alto, o instinto de liberdade e conservação. Agarrou o casaco de algodão, tingido de lama, enrolou-o na capanga de couro, e, empunhando punhal e pistola, correu por um beco próximo, que dava para o rio Mucugê.

Quando a patrulha chegou, já o mineiro tinha desaparecido na escuridão.

Todos se apressaram em dizer que o criminoso já não estava ali; tinha fugido,
ninguém sabia para onde.

O comandante da patrulha agastou-se com tanta inocência:

— Alguém haveria de saber, ou então prenderia todos.

Para aquietar a fúria dos soldados, um, menos discreto, dos tropeiros disse:

— Ora! fugiu por esse beco aí, e se bem andou, já atravessou o rio.

— Olha os sapatos dele ali, acrescentou outro, apontando, à luz do fogo do caldeirão da feijoada, os sapatos do mineiro debaixo da rede.

Assim orientados, os guardas (como então eram chamados) atufaram-se na escuridão do beco, em carreira até à Várzea; porém nada viram nem ouviram. Apenas ninhadas de porcos espantados corriam, soprando e roncando, pela várzea afora. A um soldado pareceu-lhe lobrigar um vulto branco, ao longe, correndo. Por desencargo de consciência, descarregou a pistola que levava em companhia da baioneta. Não se viu mais nada. Após o estampido, que ecoou de quebrada em quebrada, e os estalos do ricochete da bala nas pedras, tudo ficou em silêncio, em relação a vozes e movimentos de gente.

Somente o Mucugê escachoava ruidoso por entre os rochedos e penedias escuras de suas margens e leito.

A patrulha entrou em consultas recíprocas e resolveu-se a voltar à intendência.

Os camaradas de Ricardo não arredaram pé dos lotes.

Ao chegar à rancharia, o comandante da patrulha inquiriu se não tinha companheiros ali o criminoso:

— Que tinha camaradas, foi a resposta de Pingo d’Água, e indicou os quatro, incluindo-se.

— Pois me acompanhem, disse o furriel Furriel: era uma graduação militar que existiu no Exército, nas polícias e nos corpos de bombeiros militares no Brasil. Em alguns contextos, o termo pode ser comparado ao que hoje seria o terceiro-sargento, ou usado apenas para se referir a uma função específica, como a de organizar a folha de pagamento e as refeições dos sargentos, cabos e soldados.
da patrulha.

— Pra cadeia? Perguntaram a um tempo os camaradas.

— Sim, respondeu um guarda, enquanto o furriel coçava a cabeça, inclinando a barretina sobre os olhos.

Uai! Exclamou Benedito, como é que o patrão faz um dilito e o camarada vai preso?

— Não. Isso não está direito, não; acrescentou Joaquim.

— E que tem isso? Perguntou o comandante.

— Tem, que eu não vou por bem, nem por mal, porque não fiz dilito nenhum. E comecem com muita conversa, eu grito meu amo, senhor coronel Rocha, e está tudo acabado. O sobrado dele é ali perto, disse Pingo d’Água.

Diante desse nome e da ameaça, o furriel coçou de novo a cabeça e os guardas emudeceram.

— Mas é preciso sempre ir à casa do Sr. subdelegado.

— Está bom, isso a gente vai amanhã, retrucou Pingo d’Água; hoje já é tarde, não tem quem tome conta do rancho. E depois o vadio não teve nada. Um carocinho de chumbo na pele.

O furriel concordou e retirou-se, depois de tomar o nome do patrão e dos camaradas, em direção da casa duma velha Sinhanna, onde soube estar o ferido, um rapazola imberbe, órfão de pai e mãe.

Aí verificou o furriel que realmente não devia incomodar o subdelegado. Apenas quatro caroços Caroços: no contexto apresentado, a palavra caroços se refere a pequenas balas ou projéteis de chumbo, usados como munição em armas de fogo antigas.
de chumbo empregaram-se na omoplata direita, interessando somente o tecido celular subcutâneo. O couro de boi certamente enfraquecera a força dos projéteis.

Remédios caseiros foram aplicados e o rapazinho fumava o seu cigarro tranquilamente.

Em todo o caso, no dia seguinte foram ouvidos os camaradas e mais tropeiros, formando-se o corpo de delito. Por mais que as testemunhas do inquérito inocentassem o delinquente, este, na melhor hipótese, teria que pagar a imprudência do seu impulso, com quatro anos de prisão com trabalho, ou mais oito meses de prisão simples, porque ficou bem classificada a tentativa de homicídio.

Entretanto não houve mais novas do mineiro. Essa falta de notícias incomodava ao capitão Joaquim Manuel, por estar de posse do dinheiro de Ricardo, e exposto à probabilidade de comparecer em juízo, o que nada tinha de agradável.

Providenciou, portanto, em segredo, para que fosse encontrado o mineiro, vivo ou morto.

Quanto aos camaradas, mandou chamá-los e aconselhou-os que não abandonassem o rancho.

Somente não pôde dar um jeito em Pingo d’Água, que, à noite, andava já de viola ao peito, cantando em desafio Desafio: disputa de cantoria improvisada entre duas ou mais pessoas, em que os participantes criam versos na hora, rimando e respondendo ao adversário. Essa tradição, conhecida como repente, embolada ou moda de viola, faz parte da cultura popular brasileira e ainda acontece em várias regiões do país.
pelas tavernas, temendo somente se enfrentar com o famoso Ponta d’Água.


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