Abria-se para o nascente o velho casarão da Lagoa Seca Lagoa Seca: localizado no município de Iraquara, na Chapada Diamantina, na Bahia, o povoado de Lagoa Seca pode ter servido de inspiração para alguns dos cenários de Lindolfo Rocha. Embora o autor não mencione diretamente esse local em suas obras, é possível que ele tenha conhecido a região durante suas andanças pela Chapada Diamantina, incorporando-a, de forma indireta, em seus enredos. .
As dimensões da morada, e, mais que isso, o amplo avarandado de peitoril Avarandado de Peitoril: varanda de casa que apresenta estruturas horizontais, geralmente em janelas ou paredes, onde é possível se debruçar ou apoiar objetos. Na região Chapada Diamantina – BA, é comum encontrar peitoris na arquitetura das casas antigas, marcando a estética e a funcionalidade das construções da região. Hotel Alpina na cidade de Mucugê – BA., guarnecido por centenas de tabiques Tabiques: divisórias de pequena espessura, geralmente de madeira. , graciosamente recortados, vistos de longe, sugeriam a presunção de ser ali o pouso da abastança e do conforto.
No entanto, ao aproximar-se um pouco, o viajante arguto, lido ou corrido, mal continha uma interjetiva de desilusão, porque, em realidade, os listrões vermelhos de goteiras que lavaram o caiamento Caiamento: aplicação de cal, geralmente cal hidratada ou cal virgem, em paredes ou em outras superfícies. Esse processo é de baixo custo e serve para proteger as construções do tempo e aumentar a sua durabilidade, além de melhorar a aparência. , corroendo o adobe de argila Adobe de argila: é um tipo de tijolo feito a partir da mistura de argila, areia e água, moldado em blocos e seco ao sol. Era utilizado principalmente na construção de paredes em áreas rurais, por ser econômico, possuir boa isolação térmica e acústica, e ser ideal para climas quentes e secos. Disponível em: psassunapontadalingua.blogspot.com201512museu-do-sertao-mossoro.html ferruginosa, as paredes rachadas, desaprumadas e carcomidas, na altura dos alicerces, indicavam uma casa abandonada. Acrescente-se a vista de estacas isoladas, moirões de porteiras inclinados e apodrecidos, e ter-se-á a classificação de tapera que os sertanejos dão a moradas que foram de gente opulenta Gente opulenta : no contexto apresentado, refere-se a pessoas que, no passado, possuíam riquezas, bens ou uma posição de destaque na sociedade, mas que, com o tempo, perderam sua fortuna, prestígio ou influência. . De fato, os raros vizinhos de légua e mais, denominavam essa antiga fazenda Tapera da Lagoa, ou simplesmente: — Tapera. Mas assim o faziam somente em ausência dos donos que ainda a habitavam, posto que em estado de extrema pobreza e miséria orgânica.
Ao encontrar-se com o velho Raymundo Alves, ou com a quinquagenária Maria Rosa, sua mulher, os vizinhos, conhecidos velhos, talvez por um impulso de compaixão para com os herdeiros de uma das melhores fortunas do sertão em princípios do século passado, tratavam-no por senhor Raimundo e cortejavam-na com o tratamento de dona. Era isso também uma espécie de caridade que eles agradeciam com um sorriso desconsolado, sem, contudo, esquecerem jamais os modos altivos e os tiques de ricaços de outros tempos.
Teve esse casal quatro filhas e dois filhos. Como os pais, viviam quatro restantes, em ociosidade, cobertos de andrajos, morrendo à fome. A seca de 59 Seca de 59: foi um evento climático ocorrido em 1859, que afetou principalmente o sertão baiano, com escassez prolongada de chuvas. Isso resultou em falta de água, alimentos, morte de gado e um grande aumento dos preços dos produtos, tornando ainda mais difícil a vida da população local. (https://ppgh.ufba. br/sites/ppgh.ufba.br/files/2 _as_secas_na_bahia_do_seculo_xix. sociedade_e_politica.pdf.), foi-lhes ainda um bom pretexto para a incurável preguiça, porque ninguém realmente podia cuidar de roças.
Apenas duas moças faziam rendas Rendas: trabalhos manuais feitos com fios finos, usando agulhas ou bilros, para criar tecidos e ornamentos delicados. Essa tradição artesanal, antiga e valorizada no Brasil rural, é também fonte de renda complementar para muitas famílias. Na Chapada Diamantina, esse artesanato ainda é praticado e preservado em algumas comunidades.Diponível em crab.sebrae.com.brestado_postsrenda-de-bilros., cujo produto insignificante supria-lhes algumas precisões, de longe em longe.
Uma tarde, a velha assistia, no peitoril, ao trabalho de rendas das duas filhas, enquanto o filho João e a outra moça arrancavam, na catinga, raízes de umbu, para o bró Bró: comida simples e de baixo valor nutritivo, geralmente preparada com tubérculos do umbuzeiro, do coqueiro ou de outros vegetais. indigerível da ceia, quando soaram ao longe os cincerros e guizas Cincerros e guizas: são instrumentos em forma de chocalho ou sino, usados para ajudar a guiar e reunir a tropa durante o deslocamento. O cincerro é geralmente pendurado no pescoço de animais maiores, como bois e vacas, e produz um som forte e grave. Já as guizas são menores e costumam ser usadas como enfeites nos arreios de cavalos, produzindo um som mais leve e agudo. de uma cabeçada Cabeçada: correia ou alça que envolve a cabeça e o focinho do animal e sustenta os freios da cavalgadura; cabresto. . [1]Neste início de romance já nos é possível observar o uso frequente que o narrador faz dos chamados termos regionais. São palavras que nos remetem a uma região determinada, onde seu uso é comum. Juntamente com essa referência à região, temos geralmente indicações de um modo de vida, de comportamentos e atividades características dessa região, em um período de tempo determinado. (N. E.). (Série Bom Livro, 1978, p.11). A seca tinha tornado raras as tropas naquela estrada. Ouvidos habituados à solidão receberam esses sons como se escutassem o bimbalhar dos sinos duma igreja em festa. Houve alvoroço. O sangue subiu às faces das moças, que apanharam, às pressas, almofadas e pelegos velhos, em que se sentavam, e correram para o interior da habitação, embaraçando os bilros, cujos fios, encardidos de pó vermelho, saltavam dos pés de mandacaru, servindo de alfinetes. A velha correu ao quarto açodada:
— Seu Raymundo, boas-novas! Aí vem uma tropa!
— Levanta, homem! Cria coragem!
Estremunhado, assim, do sono doentio de faminto, o velho abriu os olhos vagarosamente. A mulher insistia baixando a voz, porque soava já no terreiro a estropiada do primeiro lote Lote: o termo se refere a cada grupo de animais que, juntamente a um condutor, transportam cargas., de mistura com os sons da cabeçada:
— Levanta, homem!
— Ó de casa! – Brada no peitoril uma voz forte, de homem, enquanto retiniam chinelas sobre os tijolos estragados.
O velho fez um esforço, sentou-se no catre Catre: tipo de cama rústica e simples, geralmente feita de madeira ou metal, comum em séculos passados, especialmente em áreas rurais ou acomodações modestas.Disponível em: www.oficinacenarioleiloes.com.brpeca.aspID=14161981. e respondeu:
— Ó de fora!
O arrieiro estava impaciente, porque mal ouviu a resposta perguntou:
— Pode-se arranchar aqui? tem cômodo pra os animais?
Não suportando mais a moleza do marido, a velha saiu e, depois de dar e receber as boas tardes, respondeu:
— Arranchar, pode; cômodo, sócampo fora Campo fora: espaço ao ar livre, em meio ao campo..
O arrieiro, um rapagão moreno, de uns vinte e cinco anos, fez um – Assim! – gemido e acompanhado de um gesto de contrariedade, e, voltando-se para os camaradas, gritou em voz de comando, enquanto desatava as esporas:
— Derruba!
E, obedecendo ao seu próprio mando, saltou do peitoril, já sem chinelas, levantando burros deitados, desarrochando-os rapidamente e atirando os couros Couro: Ao longo da narrativa, o termo “couro” é frequentemente utilizado. Em algumas passagens, ele se refere a peças de couro usadas para confeccionar arreios, cangalhas e outros equipamentos utilizados no manejo de animais. Em outras situações, o termo se refere ao “couro cru”, ou seja, à pele de animal ainda não tratada, que é geralmente mais difícil de manusear e transportar devido à sua consistência e peso. no terreiro sujo de estravo.
Chegaram os dois lotes restantes.
Era a hora do trabalho árduo do tropeiro, principalmente quando a tropa está puxada ou batida, isto é, magra, fatigada de longas jornadas. Hora de aperto em que o tropeiro, prático no ofício, não distrai a atenção para coisa alguma, porque, à tarde, o animal, carregado, pode caminhar mais uma hora; porém, parando no pouso, suporta, de pé, um minuto.
Assim, toda a demora é nociva, não só porque o burro de tropa facilmente adquire a manha de deitar-se, (e, nesse caso, é preciso levantá-lo, pois se lhe tirarem uma vez a carga, deitado, apanha também esse sestro), como porque, no levantar-se, pode sonsar ou espaduar-se Sonsar ou espaduar-se: no contexto apresentado, os termos pertencem à linguagem regional e popular, referindo-se ao comportamento do animal após se deitar. “Sonsar” indica o ato de fingir fraqueza ou cansaço, simulando dificuldade para se levantar. Já “espaduar-se” descreve o risco de o animal tombar de forma brusca ao tentar se erguer, podendo deslocar o ombro ou a região escapular. e o prejuízo é ainda maior.
Por isso, conhecedor e prático da vida de tropeiro, o velho Raymundo, parando no peitoril, assistia, impassível, ao serviço bem feito, e esperava, com paciência, que o terminassem, para saudar e receber as saudações do costume, entre sertanejos, enquanto, pelas frestas das portas e das janelas, olhares tristes e cobiçosos miravam os surrões Surrões: sacos de couro usados pelos tropeiros para guardar e transportar comidas e objetos.Disponível em: psassunapontadalingua.blogspot.com201512museu-do-sertao-mossoro.html. de sal e bruacas lustrosas de unto Bruacas lustrosas de unto: bruacas são malas de couro cru, utilizadas sobre as selas dos animais de carga, especialmente para o transporte de mantimentos como o toucinho de porco. Por serem usadas para carregar esse tipo de alimento gorduroso, ficavam brilhantes pela gordura acumulada. Disponível em: sertaodesencantado.blogspot.com201409significados-de-bruaca.html.. E não só o olhar, mas especialmente o olfato se deliciava com cheiro característico de uma carregação Carregação: ato de carregar grande quantidade de mercadoria; carga. de carne ou toucinho. Como toda a sua gente, o velho deglutia em seco.
Amainada a lufa-lufa Amainada a lufa-lufa: a expressão combina o verbo “amainar”, que significa acalmar ou reduzir a intensidade, com o termo “lufa-lufa”, usado para descrever agitação, correria ou movimento incessante. Assim, ao dizer “amainada a lufa-lufa”, o narrador indica que a correria cessou e a agitação deu lugar à calmaria., com a arrumação Arrumação: no contexto rural e regional, esse termo pode ter dois sentidos. Pode se referir ao ato de organizar objetos ou espaços, mas também é usado para indicar os preparativos para uma viagem ou um acampamento temporário, especialmente durante atividades de tropeiros. das cargas, em fileiras para cada lote, aproximou-se do peitoril o que figurava de capataz ou arrieiro, e, após a saudação, reinquiriu:
— Se não havia alguma roça a alugar, para que a tropa não ficasse campo fora. [2]Observe que apesar do uso de dois pontos, parágrafo e travessão, sequência de elementos da escrita indicadora de um discurso direto, a forma que se segue é do tipo indireto, isto é, pertence à fala do narrador. Essa transgressão de norma da escrita, sem consequências significativas, vai ser repetida durante todo o romance. (N. E.) (Série Bom Livro, 1978, p.13).
O velho retribuiu a saudação e respondeu desculpando-se com a sua extrema pobreza e a seca, pior que a de 19 Seca de 19: no trecho apresentado, a seca de 1819 se refere a um período de estiagem que atingiu o Nordeste brasileiro, incluindo a Bahia. Embora tenha causado sofrimento e prejuízos à população, seus impactos e duração foram menores em comparação com a Grande Seca de 1877-1879, considerada a mais devastadora da história nordestina.. E por esse tom prolongou-se a conversação, no correr da qual o capataz declarou-se mineiro, de nome Ricardo Valeriano Brandão, e dono da tropa, inteirando-se ao mesmo tempo de quem foi e a que estado se reduzira o velho Raimundo Alves, o herdeiro esbanjador de bonita fortuna, e que nem sabia ao justo quantos filhos naturais tinha em vários lugares.
Quanto aos camaradas, continuavam na faina Faina: termo relacionado ao trabalho árduo e demorado, realizado pelos tropeiros durante suas jornadas. de tirar cangalhas Cangalha: armação de madeira, normalmente acolchoada, que se coloca no lombo dos animais para pendurar e transportar carga de ambos os lados. Disponível em: www.du-ze.compeca.aspID=8043704. e raspar, enquanto o cuca desempenhava suas funções culinárias, tendo começado por encher e pendurar a borracha Borracha: recipiente feito de couro rústico, com bocal estreito, usado por tropeiros e garimpeiros para conservar e transportar líquidos, como água ou cachaça..
Ao lusco-fusco, depois de beber a água minguada e lutulenta Lutulenta: que tem lodo; lamacenta. da próxima lagoa, seguiu para a arrumação a tropa, guiada pelo andrajoso filho do Raimundo, o qual, por esse serviço, fazia jus aos rojões do cuca Rojões do cuca: torresmo do cozinheiro. (Série Bom Livro, 1978, p.13)..
O mineiro tinha armado a rede no peitoril, recusando a sala ou a varanda, por causa do calor.
Foi uma noite de fartura e de folgança para a ditosa família Alves. Além de partilharem todos da gorda ceia de arroz com carne (o antigo locro, que os almocreves Almocreves: pessoas que conduziam animais de carga e/ou mercadorias de um lugar para outro. espanhóis e portugueses aprenderam dos árabes), e mais do legítimo café mineiro, ouviram, até alta noite, um dos mais famosos improvisadores de trovas, desses tempos, a que chamavam Manuel Pingo d’Água: tropeiro de ofício, valente por índole, e tocador de viola por arte.
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CRITÉRIOS DE EDIÇÃO
CRITÉRIOS GERAIS DA HIPEREDIÇÃO
Para a elaboração da hiperedição, foram adotados os critérios e princípios estabelecidos por Shillingsburg (1993) e Barreiros (2013), com os acréscimos e adaptações necessários, adequados aos objetivos específicos da pesquisa. Nessa edição, deverão constar, entre outros, os seguintes elementos:
a) A edição interpretativa do texto editado, permitindo níveis de visualização e ampliação da imagem; b) A transcrição do texto sobre a imagem digital com opção de zoom; c) A edição para impressão; d) A edição com hiperlink para visualizar as correções e as variantes textuais em janelas ou tooltips; e) A barra com o dossiê arquivístico, contendo os paratextos e informações adicionais organizadas em forma de rizoma; f) Espaço para acessar a descrição paleográfica do texto; g) Quadro de avisos para informar os acréscimos e correções; h) A barra com atividades pedagógicas, contendo conteúdo para a formação leitora do literária.
Critérios adotados na edição interpretativa
Para a edição interpretativa do romance Maria Dusá, foram tomados como base o folhetim publicado no Diário de Notícias (1908-1909) e a primeira edição em livro (1910), ambos realizados em vida do autor. A preparação seguiu critérios fundamentados nas normas de Cambraia (2005), com adaptações às particularidades do texto e aos objetivos da pesquisa. Entre os principais procedimentos adotados, destacam-se:
a) Respeitar o seccionamento do texto-base em capítulos, bem como a sua paragrafação; b) Manter a pontuação original; c) Manter as palavras destacas em itálico; d) Atualizar a grafia do texto de acordo com a ortografia vigente, em vigor no Brasil desde 2009, conforme o Decreto nº 6.584/2008. Ressalva-se, entretanto, a manutenção das grafias que reproduzem a modalidade oral da língua, particularmente nos trechos correspondentes à fala das personagens, que serão preservadas tal como aparecem no texto original; e) Acentuar conforme as normas vigentes, salvo quando se tratar de registros da oralidade; f) Antropônimos não serão uniformizados de acordo com a ortografia atual, em virtude de existirem diversas grafias para o mesmo nome. Sendo assim, serão mantidos como no texto de base; g) Inserir as notas próprias do texto-base (Chardron, 1910) e do texto da Série Bom Livro/Edição Didática (Ática, 1978); h) Inserir notas explicativas e críticas do filólogo ao pé da página.